domingo, 1 de dezembro de 2013

Antecipando o Natal

 Flávio Tavares*
 
A luz do Natal antecipou-se, agora, nas amorosas advertências que o papa Francisco nos fez na encíclica Evangelii Gaudium, a Alegria dos Evangelhos. O documento não se destina só aos católicos e cristãos, mas à humanidade. E, mais do que tudo, aos adoradores do deus dinheiro, que veem no ser humano um bem de consumo numa nova tirania invisível que recusa a ética que conduz a Deus.

Os pseudorreligiosos, cegos pelo rancor egoísta, creem mais na água benta do que na solidariedade do Evangelho e verão em Francisco “um perigoso comunista infiltrado no Vaticano” por criticar o capitalismo do livre-mercado. Ainda não sabem que a Guerra Fria acabou!

As palavras do Papa valem por si e me limito a transcrevê-las. Ao aplaudir os progressos da ciência e da tecnologia, ele lembra que, mesmo assim, o medo e o desespero se apoderam das pessoas, a insegurança cresce “e a alegria de viver se desvanece”.

E salienta: “Assim como o mandamento ‘não matar’ assegura o valor da vida humana, devemos dizer ‘não’ à economia de exclusão e desigualdade social. Esta economia mata. A baixa de dois pontos na Bolsa não pode ser mais importante do que a morte de um idoso sem abrigo no frio”.

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Hoje, frisa Francisco, “tudo entra no jogo da competitividade e da lei do mais forte, e o poderoso engole o mais fraco. O ser humano é considerado um bem de consumo, que se usa e se põe fora. É a cultura do ‘descartável’, que chega a ser promovida até. Já não se trata do simples fenômeno de exploração e opressão, mas de realidade nova, que fere a sociedade na raiz, pois os excluídos não são ‘explorados’, mas resíduos e sobras”.

Critica “as teorias de que o crescimento econômico, no livre-mercado, produz por si só equidade e inclusão social” e frisa: “Esta opinião, nunca confirmada pelos fatos, exprime uma confiança vaga e ingênua na bondade dos que detêm o poder econômico e nos mecanismos sacralizados do sistema reinante. E os excluídos continuam a esperar”.

“A globalização da indiferença apoia um estilo de vida que se entusiasma com o egoísmo. A cultura do bem-estar nos anestesia. Perdemos a serenidade se o mercado nos oferece algo que ainda não compramos, mas o drama dos demais não nos incomoda”, frisa numa crítica à sociedade de consumo.

Salienta que devemos “dizer ‘não’ à nova idolatria do dinheiro” e explica que o erro está “em aceitar pacificamente o domínio do dinheiro”.

“Esquecemos que a origem da crise financeira atual do mundo é antropológica: a negação da primazia do ser humano. Criamos novos ídolos. A adoração do antigo ‘bezerro de ouro’ tem nova e cruel versão no fetichismo do dinheiro e na ditadura de uma economia sem rosto e sem objetivo humano, que reduz o ser humano apenas a uma de suas necessidades: o consumo.”

Critica “as ideologias que defendem a autonomia absoluta dos mercados e a especulação financeira” e que “negam o direito de controle dos Estados de velar pelo bem comum”. E adverte: “Instaura-se, assim, nova tirania invisível, às vezes virtual, que impõe de forma implacável suas leis e regras”.

“A isto – continua – junta-se a corrupção ramificada e uma evasão fiscal egoísta, com dimensões mundiais. Num sistema que devora tudo para aumentar os benefícios, qualquer realidade frágil, como o meio ambiente, fica indefesa face aos interesses do mercado divinizado, transformados em regra absoluta.”

“Por trás disto, esconde-se a rejeição da ética e a recusa de Deus. Olha-se a ética com desprezo sarcástico, pois relativiza o dinheiro e o poder. É uma ameaça por condenar a manipulação da pessoa. Em suma, a ética leva a Deus, que está fora das categorias do mercado. E, para o mercado, Deus é incontrolável e até perigoso, pois chama o ser humano à realização plena e à independência de qualquer escravidão.”

O antecipado presente de Natal é síntese amarga mas perfeita do descalabro atual.
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*Jornalista e escritor
Fonte: ZH on line, 01/12/2013
Imagem da Internet

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