domingo, 1 de dezembro de 2013

Procrastinando

Fernando Luis Schüler*

 

O Brasil tem um lado tedioso. Uma teimosia encruada de não resolver certas coisas que todo mundo sabe que devem ser resolvidas. Coisas que não andam porque são delicadas, porque o equilíbrio de forças não deixa, ou simplesmente porque exigem alguma inovação. É assim com nosso Ensino Médio. Todo santo ano, os resultados do Enem mostram o mesmo: nosso sabido apartheid educacional. Durante uma ou duas semanas, como agora, o assunto entra na pauta. Depois vem o verão, e a vida segue.

O apartheid funciona assim: temos duas classes de estudantes. Há a turma do São Bento, aqui no Rio, das boas escolas privadas, em Porto Alegre ou qualquer parte do Brasil. E há os 80%, os estudantes dos colégios estaduais que alguns chamam de “escolas públicas convencionais”. Nenhuma delas figura entre as mil melhores classificadas no exame. Menos de 20% delas conseguiu um resultado acima da média nacional. Não é preciso dizer o que isto significa. A educação define o mapa das oportunidades sociais. Nossa dualidade de sistemas define a “cara” de um país que parece tomar a desigualdade como destino. E a procrastinação como vício.

A procrastinação começa pelo discurso. Um argumento comum, no Brasil, para explicar o apartheid educacional vincula o mau desempenho dos alunos à pobreza. Os alunos das escolas estatais renderiam menos porque vivem em piores condições, os pais não acompanham etc. A má qualidade não seria responsabilidade da escola, e sim da “clientela”. Escutei este argumento da boca de muita gente importante, do Ministério da Educação, da academia e da política brasileira.

O argumento é sedutor. É evidente que as condições das famílias afetam o rendimento escolar. O ponto é que elas não definem o seu resultado. É isto que vêm demonstrando os resultados obtidos pelos alunos bolsistas do ProUni. Esses alunos, de famílias com menor renda, têm um desempenho, em geral, igual ou melhor do que os alunos pagantes. Acompanho muitos deles, na instituição em que trabalho. Seu segredo? Nenhum, eles simplesmente receberam o direito de escolher onde estudar, e atribuem um enorme valor a esta oportunidade. O resto é esforço, além de uma saudável integração de “círculos sociais”.

O argumento que vincula o desempenho dos alunos à renda das famílias serve para esconder o óbvio: a falência do modelo estatal de ensino, no Brasil. A responsabilidade, por óbvio, não é dos professores, mas da crônica incapacidade, sabida e ressabida, da nossa máquina estatal, com seu cipoal burocrático, de oferecer bons serviços. Situação que penaliza exatamente os alunos cujas famílias não pressionam por uma maior qualidade de ensino. Não o fazem porque não veem alternativa. Porque a vida os levou a reduzir o nível de expectativas.

Porque os políticos e “especialistas em educação” lhes ensinaram a virtude da paciência. Paciência que não possui, parafraseando o Elio Gaspari, a turma do “andar de cima”, que matricula os filhos em bons colégios (com todo o direito) e aprecia a escola pública para os filhos dos outros.

O ProUni, criado na gestão do então ministro Tarso Genro, representa uma pequena-grande revolução brasileira. Ele sinaliza um caminho: um modelo de políticas públicas em que o Estado garante a efetividade de um direito, e a sociedade provê o serviço. O Estado faz o que sabe fazer: estabelece parâmetros de qualidade, financia, assegura o acesso em condições de igualdade. O setor privado, com ou sem fins lucrativos, faz o que sabe fazer: a gestão. A burocracia é mínima. O aluno ganha direito de escolher. O sistema traduz com perfeição a velha tese do voucher educação.

A pergunta que resta, nestes dias de discussão do Enem, é: por que não fazemos a mesma coisa no âmbito do Ensino Médio? Por que não prestamos atenção no que vem se fazendo mundo afora, sejam modelos de bolsas, como o ProUni, as charter schools, nos EUA, as “academias”, na Inglaterra? Fiz esta pergunta a diversos líderes políticos, e em geral obtive uma não resposta: seria difícil aprovar isto no Legislativo, há os sindicatos, há dificuldades técnicas, o preço das mensalidades, critérios de seleção. Mais fácil é abrir concurso, seguir a cartilha, e continuar apostando no mesmo de sempre.
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*Doutor em Filosofia pela UFRGS
Imagem da Internet
Fonte: ZH on line, 01/12/2013

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