“Por ocasião de um almoço entre autores, um amigo filósofo me fez a seguinte confidência: “Deus não existe, eu rezo para Ele todos os dias...’ E continuou: ‘Todos os dias eu recito o Pai-nosso da minha infância, que não quer dizer nada para mim. Nenhuma palavra faz sentido e, no entanto, isso me faz bem, sou fiel a essa prática desde sempre...’ Depois virando para mim, acrescentou: “De qualquer maneira, eu gostaria de compreender alguma coisa a esse respeito antes de morrer... Você é teólogo, eu li seus livros. Será que você poderia me dar algumas explicações?”. A partir daquele dia existe em mim uma espécie de ‘dívida’ de amizade e, também, uma questão: “Como é possível declarar-se ateu e rezar todos os dias o Pai-nosso?” (do Prólogo).
JEAN-YVES LELOUP*
Dizer que Deus não existe ou que ele existe é dizer em termos opostos exatamente a mesma coisa. Não existem mais “provas” de sua existência do que de sua inexistência.
Aquele que quer provar a existência de Deus deve indicar em um determinado momento da sua demonstração que Deus não existe como as coisas existem, senão ele seria mortal como todas as coisas que existem. Ele não é um ente dentre os entes, nem o ente supremo, ele não é objetivável, ele é no-thing, “uma não coisa”: ele não existe.
Aquele que quiser provar a inexistência de Deus deverá indicar em um determinado momento qual Deus ele não é, e de que maneira ele não existe; ele não existe como coisa que podemos ver, sentir, analisar, etc. “Deus ninguém jamais viu”, e é exatamente isso o que nos diz o Evangelho (cf. o Prólogo de São João).
Deus não é algo a ser visto, ele é aquilo que torna todas as coisas visíveis (Deus, dies: a “clara luz”). Deus não existe, ele é.
Ele também não é um “objeto” de consciência, mas a própria consciência, o espaço, a vacuidade na qual aparece aquilo que existe. Como diz o livro do Gênesis: “todas as coisas aparecem do nada”, o no-thing. Devemos ver todas as coisas visíveis emergirem do Invisível e esse Invisível não é alguma coisa, “isso” é, mas não sabemos o que isso é. Isso não se demonstra com provas, isso se experimenta ( No original em francês: “Cela ne se prouve pás, cela s´éprouve” (N.T).
Se não existem provas da existência de Deus, talvez haja provações e cada um tem as suas. A de Moisés não é a mesma de Buda ou de Yehoua. Cada representação de Deus não diz nada sobre o que é Deus, mas nos diz tudo sobre aquele que experimenta essa Realidade que ao mesmo tempo o fundamenta e lhe escapa incessantemente.
Deus não existe, existe o homem que ora, o homem de desejo, aberto ao Desconhecido que o origina e o faz sujeito. Ele balbucia palavras de criança, Abba.
Quando dizemos que Deus não existe, devemos precisar de que tipo de ateísmo estamos falando: de um ateísmo rebelde ou reativo, de um ateísmo razoável ou de um ateísmo gnóstico ou místico.
O ATEÍSMO REBELDE ou reativo se justifica por um certo número de sofrimentos reais, muitas vezes de opressões, vívidas por autores cujo passado, pessoal ou coletivo, está mal integrado. Às vezes eles tendem a tomar as cascas da fruta pela fruta. Seu ateísmo é psicológico, raramente filosófico; a questão de Deus em si não lhes interessa.
A atitude rebelde pode tornar-se sistemática; ela será, então, mais ou menos fanática e odiosa para com todas as formas de sagrado ou de transcendência que abririam o homem ao Espaço que o contém ou à Alteridade que o encontra. Não sem complacência, essas pessoas se fecham no “ser para a morte” e, de maneira mais ou menos inteligente ou perversa, fazem passar por amor pela vida (qual vida?) sua fascinação secreta pelo nada.
O ateu rebelde frequentemente fala alto, ele sabe que os seus latidos jamais serão argumentos; ele mal consegue esconder o seu medo e a sua aflição, também não devemos responder ou falar-lhe no mesmo tom, já que ele não ouve. Para ele, nem o outro (homem) nem o Outro (Deus) existem. Devemos ser pacientes com ele, assim como um pai pode ser paciente com seu filho rebelde, observando-o crescer através da sua rebeldia... Um dia, o ateu rebelde terá acesso, talvez, a uma certa autonomia para com seu passado. Ele não terá mais necessidade de ser “contra”. Quem sabe, ele virá a tornar-se um ateu razoável?
Mais do que emoções, ele terá, então, a nos propor algumas argumentações; há séculos as mesmas: “Se Deus existisse, todos saberiam, seríamos obrigados a acreditar”. Mas ser obrigado a acreditar é exatamente o contrário da liberdade da fé. “Existem no mundo e nas escrituras o suficiente para duvidar ou crer na realidade de Deus”, dizia Pascal. Crer ou não crer, continua sendo uma escolha. Não somos ateus por ciência ou demonstração, mas por escolha.
Se Deus existisse, se Deus é Pai, então, por que todos esses sofrimentos no mundo, por que o assassinato dos inocentes? Essa é a questão do mal e do seu excesso.
Yeshoua, à diferença dos filósofos, jamais procurou responder a esta questão. Ele recebeu o mal injusto de um só golpe; ele próprio viveu o massacre do inocente. Ele atravessou o mal, ele não fez da morte a última palavra. Quando dizemos que ele está “ressuscitado”, tentamos dizer que para ele, e talvez para nós, não é a violência, o absurdo, o ódio ou a morte que terão a última palavras: o Amor talvez seja a saída, pois ele pode salvar o que nos resta de humano nas situações mais inaceitáveis:
Perdoai-os, eles não sabem o que fazem.
Essas palavras não são uma resposta intelectual ao problema do mal, mas uma resposta existência. Podemos opor a uma razão, uma outra razão, mas o que podemos opor à Vida, ao Amor? Sem dúvida, a recusa em acreditar, mas seria isso ainda “razoável”?
No entanto, o ateu razoável é mais inteligente do que o ateu racionalista, que sempre busca demonstrar ou provar alguma coisa. Os argumentos o cansam muito rápido. “As explicações cansam a verdade”, dizia Braque (George Braque (1882-1963), pintor, Braque foi, ao lado de Picasso, um dos grandes expoentes do Movimento Cubista (N.T.). Para o ateu razoável é mais importante viver bem, organizar bem seu mundo sofrendo o menos possível, sem se preocupar com Deus, que ele considerará uma “hipótese inútil” pela qual os crentes (laicos ou religiosos) continuam a de despedaçar entre si. Todas as querelas não são dignas de um “bom” filósofo materialista.
Diferente do ateu rebelde, o ATEU RAZOÁVEL é um ateu preguiçoso. Ele exerce sua razão apenas para sua própria comodidade, sem conduzi-la aos seus limites, até sua abertura, àquilo que a realiza e a transcende ao mesmo tempo. Essa preguiça é uma escolha: “Não quero saber, para quê? O que eu conheço é suficiente.”
Conhecer o conhecido (que ele toma pelo cognoscível); não existe nada além disso. Para que procurar mais? Seria razoável procurar conhecer o incognoscível?
Mas existem ateus que não se contentam em ser rebeldes ou reativos, ou seja infantis; que também não se contentam em ser razoável e de permanecer fiéis ao conhecido, ou seja, pequenamente adultos. Existe, de fato, ateus gnósticos ou místicos que não negligenciam nenhum dos argumentos da razão ou não desprezam nenhuma ciência, psicologia ou filosofia, mas que, à força de estudo, tomaram as medidas e levaram em consideração os limites.
Sem parar aí, sem se fechar, ele continuam a interrogar o Real até provarem essa Realidade que não existe e que eles não se apressam em chamar “Deus”, pois tudo aquilo que dissemos de Deus não tem nada a ver com Deus, mas tudo a ver com aquele que “prova” um Ser que le reconhece como sendo incognoscível.
Não é uma maneira de explicar aquilo que não compreendemos através daquilo que compreendemos menos ainda, é uma maneira de permanecer aberto; não é um saber, é um sabor; não é uma explicação, mas uma experiência, um experimentar.
Deus não sabe o que ele próprio é, pois ele não é alguma coisa e essa ignorância ultrapassa todo conhecimento. Mestre ECKHART, seguindo os passos de Jean Scot Erigène, de Denys o Teólogo, de Gregório de Nissa, de Clemente de Alexandria e de toda a grande tradição apófática (Cf. Jean-Yves Leloup. Introdução aos “verdadiros filósofos” – os Padres gregos: um continente esquecido do pensamento ocidental, Editora Vozes, 2003), descreve bem o que pderia ser o itinerário de um ateu místico ou gnóstico:
É preciso que ele chegue a um estado de ignorância! É preciso que haja tranquilidade e silêncio ali onde essa presença dever ser percebida. Não podemos chegar a ela de maneira melhor do que através da tranquilidade e do silêncio; ali a compreendemos da maneira correta: na ignorância! Quando não sabemos mais nada, ela se deixa ver e se revelar [...] É partindo do conhecimento que devemos chegar ao não-conhecimento! Pois essa é uma forma superior de conhecimento..” (cf. Mestre Eckhart. Oeuvres (Obras), Gallimard, 1987, p.49-50).
O supremo saber, a suprema visão, consiste em saber e em ver sem saber e sem ver. (cf. Mestre Eckhart. Ainsi parlait Soeur Katrei [Assim falava Irmã Katrei].
A cada dia, ao orar, tenho o pressentimento do seu Nome: “Ele é”. Ele é o que Ele é. Eu não sei o que Ele é.
Ele é “Eu Sou” e apenas o “Eu Sou” que eu sou pode conhecer o “Eu Sou” que Ele é, não como um objeto, mas como a própria essência da minha subjetividade.
Inútil dizer que um tal ateu é um verdadeiro crente. Aliás, é isso que lembrava Dostoievski (Ao longo de sua obra, Dostoivski colocou o problema do homem dividido entre a presença do mal e a busca de Deus, entre o consciente e o inconsciente) quando dizia que um ateu sincero e exigente está, talvez, mais próximo do verdadeiro Deus do que um religioso apegado às crenças aprendidas.
Deus não existe, eu rezo para ele todos os dias... Todos os dias eu renovo a minha ligação, minha relação com o Desconhecido que me faz existir como sujeito e como liberdade. Por que, então, não chamá-lo de Abba, “Pai”, ao invés de “Princípio primeiro” ou “Causa primeira”?
Frequentar quotidianamente a oração de Yeshoua continua sendo aquilo que transforma nossas questões mais íntimas em fontes vivas de maravilhamento e contemplação.
*Sacerdote, teólogo, filósofo e Ph.D. em psicologia, fundador do Colégio Internacional dos Terapeutas, conferencista e escritor conhecido mundialmente. Possui dezenas de publicações na área da espiritualidade e da exegese, dentre as quais; Judas e Jesus, Jesus e Maria Madalena e os comentários aos evangelhos apócrifos de Maria, Tome e Felipe.
FONTE: LELOUP, Jean-Yves. Deus não existe! ... eu rezo para Ele todos os dia!. Trad. Karin Andrea de Guise – Petrópolis, RJ, Vozes, 2008, pp.127-132.
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