terça-feira, 1 de dezembro de 2009

O filósofo da negação



Em visita ao Brasil, o francês François Jullien nega a existência dos valores universais e questiona o conceito de direitos humanos.
 "Diz-se que o futuro está na China,
mas o futuro não está na China,
o futuro está no Brasil",
 afirma o sinólogo,
que destaca como motivo a
diversidade da sociedade brasileira.

Todo homem que vê uma criança caindo corre para ampará-la. "Não importa quem seja esse homem. Se ele não faz isso, não é um bom homem", diz o filósofo francês François Jullien, professor da Universidade de Paris VII e diretor do prestigiado Instituto do Pensamento Contemporâneo. Não interessa o que esse homem pensa, como é, de onde vem. Tampouco importa saber qual é a sua noção de verdade ou de justiça. Se ele corre e segura a criança que cai, merece ser chamado de homem. Se, ao contrário, não faz isso, por exclusão, pelo negativo, pelo que não fez, ele se torna monstruoso.

"O bom se define pelo negativo e não pelo dogma", resume Jullien. O homem que amparou a criança não é bom porque carrega a verdade ou porque representa os bons valores. Ele é bom, sobretudo, pelo que deixou de fazer - abandonar a criança à sua sorte. Torna-se bom não por suas ideias, mas por seu movimento: corre e protege a criança. Não porque representa esse ou aquele dogma, essa ou aquela certeza. Mas porque não aceitou o inaceitável.

No mundo globalizado, falamos, cada vez com mais desembaraço, nos "valores universais", que corresponderiam à realidade uniforme de hoje. Entre eles, o mais sagrado, os "direitos humanos". Ocorre que o universal não é o uniforme. Tampouco é o reino das generalidades. "O conceito de universal é singular, logo contraditório em si mesmo", adverte Jullien. O universal não tem a forma de uma montanha. Ele é mais um limite, que nos protege do abismo.

Não é fácil seguir as ideias perturbadoras de François Jullien. Há duas semanas, em visita a Rio, São Paulo e Porto Alegre para lançar seu novo livro, "O Diálogo entre as Culturas" (tradução de André Telles, Jorge Zahar Editor, 224 págs., R$ 32,00), ele deixou um rastro de fértil inquietação, mas também de sensível incômodo. Jullien é um homem pequeno e elétrico, que fala mirando um ponto invisível no horizonte, como se dialogasse com Deus.

Deus? Eis mais uma ideia universal - ou, pelo menos, uniforme - que Jullien não pode aceitar. Não podemos definir o universal por exclusão - isso vale para todos, aquilo só vale para alguns -, alerta. O universal não é a repetição, mas a soma de singularidades e de diferenças, afirma. Não está no reino da generalidade, mas da necessidade. "O universal, em seu sentido forte, é aquilo que deve ser", afirma.

Em um mundo uniformizado, acredita Jullien, a literatura e a poesia recuperam sua potência justamente porque se transformam em redutos do singular. "A literatura é o discurso do singular. A poesia recupera o que o pensamento ocidental perdeu." E o que perdemos? Ao confundir o universal com o uniforme, ele nos diz, centramos nossos interesses na comodidade e no estereótipo. "Hoje somos tentados a chamar de universal o que não passa da triste repetição do mesmo."

À ideia de universal Jullien prefere a noção de "comum". Distingue: "O universal é um conceito lógico. O comum é um conceito político". Existimos e sobrevivemos através daquilo que temos em comum: a família, os amigos, a cidade. Mas esse comum não é o uniforme e sim um conjunto disforme de singularidades. Basta dar uma olhada pelas ruas de São Paulo. A cidade está longe de ser um monólito. Ela é, ao contrário, a soma complexa, contraditória, irregular de sujeitos e objetos singulares. Nada mais distinto de um batalhão uniformizado que uma cidade. Nada mais distante do universal do que o dogma.

Igualmente iludidos, julgamos que ideias como o ser, a verdade, o tempo e a felicidade são universais. François Jullien - que é sinólogo e estudou muitos anos na China - afirma que elas não são. "Na China, descobri que esses valores básicos, que julgamos universais, não são universais." Dizemos, em geral, que a China é um país muito diferente, mas Jullien também não acredita nisso. "A China não é diferente, mas indiferente. Isto é, é um país que se desenvolveu à parte, indiferente aos valores e ao pensamento do Ocidente."

A noção de "substância", por exemplo, não existe no pensamento chinês. Em seu lugar, os chineses põem a ideia de "energia" - isto é, de movimento, de respiração, de tensão. "Na China não se fala de substâncias, mas de relações." Isto é: de correspondências entre singularidades. Pensamos, por exemplo, em uma "paisagem" - noção que vem da ideia uniforme de "país". Compara Jullien: "Para os chineses, ao contrário, paisagem é a soma de dois ideogramas, que significam as montanhas e as águas. Logo, a paisagem, para eles, é uma relação entre duas coisas, uma energia, uma polaridade, e não uma substância universal".

A mesma ideia de tensão, diz Jullien, deve valer quando pensamos valores universais como os direitos humanos. Alerta: "Eis um conceito que precisamos urgentemente repensar". Isso nos obriga a repensar, antes, a ideia de universal. Se o universal não é o uniforme, o que ele é? "O universal é um conceito composto de diferentes planos e de diferentes origens", fala. "É uma espécie de mosaico." Daí a necessidade de distinguir o universal do universalismo. O universalismo é o total, aponta para o todo, para o conhecido, para o aceito. Já o universal é um conceito negativo, que não aceita o acabado, o estereótipo, o pronto. "É, portanto, um conceito negativo e não positivo. E justamente por isso se torna mais potente."

Para o filósofo, a ideia de universal nega a ideia de universalidade. É seu contrário. E os direitos humanos, como ficam? "Não é uma questão de relativizar os direitos humanos", ele nos alerta. "Pois, fazendo isso, você os destrói." Mas, então, o que eles são? "Não devemos tomar os direitos humanos como uma noção positiva - que regulariza, ordena, uniformiza -, mas como uma noção negativa, que fala do que não podemos aceitar." Eles se referem a fatos históricos, que estão em constante movimento e transformação. Eventos complexos e contraditórios, que não se definem por um conjunto, uma tradição ou um dogma, mas por uma borda - o abismo do inaceitável.

O Ocidente não tem o direito, portanto, de exportar a noção de direitos humanos como algo que os outros devem aprender e adotar. Os direitos humanos não são uma lição a ser transmitida e praticada. São, ao contrário, um limite a partir do qual qualquer um de nós se torna um monstro.

"Diz-se que o futuro está na China, mas o futuro não está na China, o futuro está no Brasil", afirma François Jullien. O sinólogo lamenta que, com o avançar dos anos, a China tenda, cada vez mais, para o uniforme. O Brasil, ao contrário, quanto mais cresce, mais se diversifica. "O Brasil é o Outro do século XXI, e não a China", acredita. Para ele, o futuro está na variedade e na mistura - está numa complexa rede de relações e de tensões entre sujeitos singulares e diferentes. "O Brasil se torna, por isso, a melhor imagem daquilo que está por acontecer", completa.

Pelos mesmos motivos, Jullien não acredita nas mudanças repentinas, ruidosas e taxativas. Mas na força das transformações silenciosas. "Veja o que se passa em nosso corpo durante o envelhecimento", compara. "Não ficamos barrigudos, carecas ou encurvados de repente. Este é, ao contrário, um processo lento, invisível e silencioso, mas inexorável."

Nas pequenas tensões e nos pequenos movimentos, e não na adoção de dogmas, nos tornamos humanos. É no choque entre as singularidades que alguma coisa de universal se afirma no homem - e não na imposição de normas e de padrões. O homem que ampara a criança que está para cair faz isso não em nome da verdade ou de um dogma. Corre e a segura unicamente porque é algo que ele não pode deixar de fazer. É pela negação do horror e do abominável, e não pela afirmação de valores e de crenças, que ele se torna um homem.
Reportagem de José Castello, para o Valor, do Rio
FONTE: Valor Econômico - 27/11/2009 - Caderno: EU & FIM DE SEMANAhttp://www.valoronline.com.br/?impresso/cultura/92/5969385/o-filosofo-da-negacao

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