O escritor André de Leones estava na cozinha com sua mãe, na pequena
cidade de Silvânia, quando o sino da igreja soou. Pelo toque, uma morte
seria anunciada em seguida, e o som se propagaria pelo vale goiano a
partir do sistema instalado no campanário. Até os cachorros paravam de
latir nessa hora. Foi quando a voz do sacristão comunicou a morte de
dona Lúcia... a mãe de Leones, de nome Lúcia, deu um pulo e pôs a mão no
peito. "Calma, mãe, a senhora não morreu", acudiu Leones. "Ou então
estamos os dois mortos."
Levar um anúncio de morte tão a sério pode parecer coisa antiga, dos
tempos em que cortejos fúnebres nas ruas e rituais prolongados de luto
eram comuns no país. No entanto, por mais que a morte tenha se deslocado
para o ambiente hospitalar e seja assunto considerado desagradável na
modernidade, a tradição de registrar e comunicar uma morte para a
comunidade se mantém. Carros de som ainda convidam para enterros em
bairros populares e cidades menores, como fazia a torre da igreja de
Silvânia, na história contada por Leones. Dependendo dos costumes
locais, cartazes colados em postes e comunicados em jornais permanecem
como mídias eficientes, com leitores atentos. Em direção ao futuro,
surgem os memoriais on-line e outras formas de driblar, na internet, a
saia-justa de não poder "curtir" a morte de alguém anunciado pelo
Facebook.
"Não é um mercado que possamos prospectar, e nem ficaria bem", afirma
o diretor-comercial da Infoglobo, Mário Rigon, sobre a grande
quantidade de anúncios fúnebres no jornal "O Globo", segundo ele um
fenômeno espontâneo. "Apenas deixamos a seção ser paginada por último e
temos um operador de 'call center' atencioso de plantão. Acredito que
seja uma tradição carioca mostrar o que aquela pessoa representava na
sociedade."
O status do morto fica subentendido pelo tamanho e pelo número de
anúncios. No começo do mês passado, por exemplo, o jornal teve que abrir
uma página extra para abrigar dez anúncios referentes a uma mesma
morte, cada um encomendado por um braço da família ou uma entidade das
relações do empresário, que morrera de causas naturais.
Os avisos são colocados na mesma página do obituário, uma seção com
alto índice de leitura no jornal. Podem ser chamados para enterros,
missas de sétimo dia ou apenas registros de aniversários de mortes,
algumas de anos atrás. Podem ter apenas dois centímetros ou ocupar uma
página inteira.
O anúncio fúnebre é considerado o primeiro dos rituais do luto, que
já foram muitos, mas hoje se resumem a velórios curtos e enterros
rápidos nas grandes cidades. E talvez seja o mais importante: "É
fundamental que o enlutado tenha a oportunidade de se comunicar e se
congregar com aqueles que conheceram a pessoa que morreu", diz Maria
Helena Pereira Franco, coordenadora do Laboratório de Estudos sobre o
Luto da PUC-SP. Para ela, independentemente das mídias que sejam usadas,
a tradição dos anúncios se manterá.
"Os esforços para se negar a morte acabam se mostrando débeis", diz
Maria Helena. "Se, por um lado, ninguém gosta de falar de morte, porque
precisamos ser descolados e espertos, por outro estamos cada vez mais
expostos a notícias sobre tragédias, e nos apropriamos dessas
informações para tentar nos entender como mortais." Ou seja, passamos a
vida tentando afastar a ideia de morte, sinônimo de fracasso diante da
obrigação moderna de vencê-la a qualquer custo, mas ficamos consternados
com uma tragédia coletiva como a do incêndio na boate de Santa Maria.
"O bom de se entender a morte como algo humano é que isso muda a
perspectiva de vida", diz a psicóloga.
Não à toa a morte costuma ser matéria-prima frequente dos escritores.
"O uso que se fazia dela, na minha cidade, marcou minha escrita",
admite Leones, autor de "Dentes Negros" e "Hoje Está Um Dia Morto",
entre outros. Depois do anúncio pela torre da igreja de Silvânia, na sua
adolescência, nos anos 1990, um ritual fúnebre iniciava-se com velório
prolongado na casa do morto e cortejo fúnebre até o cemitério, e
terminava com alguma lição de moral para os jovens a partir da história
do falecido ou da forma como morrera. "No fim, alguém sempre comentava:
agora ele vai descansar", conta.
"A paz prometida ao falecido camufla a verdadeira e única paz
oferecida pelo falecimento, a saber a paz de quem, acompanhando o
féretro, constata que ainda não foi a sua vez." Com frases perturbadoras
como essa e a inspiração nos anúncios fúnebres que ouvia quando era
criança na cidade mineira de Visconde do Rio Branco, Carlos de Brito e
Mello escreveu o premiado romance "A Passagem Tensa dos Corpos." No
livro, o narrador tem como ocupação principal registrar e descrever as
mortes que encontra pelo caminho. "Minha tese no livro é de que o
anúncio da morte não é o fim, mas o começo da narrativa: ela é elemento
fundante da cultura", diz Mello.
Uma tese que começou a ser formulada a partir da observação de como
os adultos reagiam quando um carro de som anunciava alguma morte em
Visconde de Rio Branco, cidade dos avós. "A morte deflagrava uma grande
conversa, pequenas narrativas sobre as intrigas de nossas vidas comuns. E
o Jorginho, filho da Naná, só começava a existir para mim no dia em que
tinha morrido." Em seu romance, o conflito surge quando o narrador se
depara com uma morte que não pode ser registrada, um cadáver insepulto
mantido por uma família, na sala de jantar. "Sem a constatação da morte,
a história nunca pode ser finalmente contada", diz o escritor.
Para compor o seu romance, porém, Mello se deparou com problema
idêntico ao de qualquer pessoa diante da tarefa de redigir um aviso
fúnebre, seja ele lido no carro de som, publicado no jornal ou na
internet: a precariedade da linguagem. Para tentar acolher as zonas de
penumbra que a morte traz, o escritor recorreu a lacunas de texto,
espaços vazios que aparecem por todo o livro. "Cria-se um embaraço
irredutível: a linguagem não está apetrechada para a morte. Do ponto de
vista informativo, não há mais o que dizer, e no entanto é preciso
processar a morte na linguagem. Aí que surgem aquelas palavras solenes
ou austeras dos anúncios, a repetição ou a gagueira na cobertura de
grandes catástrofes na TV", analisa.
O publicitário e locutor Natto Bretas em geral começa o texto de seus
anúncios, repetidos pelo carro de som, da seguinte forma: "Atenção: é
com dor e pesar que comunicamos o falecimento de...". Ele faz uma
locução "linear e puxada pra baixo" e, como fundo musical, sugere algum
tema instrumental "pesado, que remete à tristeza, do tipo fim de filme
de guerra". Já usou também, algumas vezes, a música "Ben", de Michael
Jackson, e "The Closer I Get You", cantada por Roberta Flack. "Música
nacional, ninguém pede", observa.
O carro, o mesmo usado em chamadas comerciais e campanhas políticas,
percorre bairros populares da região metropolitana do Rio, especialmente
na cidade de Niterói. Quase sempre o morto precisa ser apresentado
também pelo apelido e pela posição que ocupava naquela comunidade. "Em
geral são pessoas de importância para as classes C, D e E, como um
presidente de associação de moradores ou o dono de mercearia local", diz
o publicitário, que cobra R$ 100 por hora. Bretas diz acreditar que a
frequência desse tipo de anúncio, comum nas cidades do interior, tende a
diminuir nas capitais. "No ano passado, só fiz uns quatro." Pelo menos,
diz ele, diferentemente de outros tipo de propaganda em carros de som,
ninguém reclama do barulho quando o assunto é um enterro.
Para a professora Eliane Mergulhão, doutora em comunicação
folclórica, práticas culturais podem permanecer e resistir a inovações
tecnológicas mesmo em grandes cidades, quando estão relacionadas a
crenças mais arraigadas e temas como a morte. Ela fez um estudo a partir
de uma curiosa tradição observada em Caçapava, no interior de São
Paulo: ali, a população se acostumou a ser informada sobre mortes por
meio de cartazes colados em postes. Pelo hábito local, os comunicados
impressos em gráfica são chamados de "convites", chamando para enterros e
missas de sétimo dia, e fazem parte dos pacotes de serviços oferecidos
pelas funerárias. Assim como os carros de som percorrem apenas os
bairros de familiares e conhecidos do morto, os cartazes também são
colocados em pontos estratégicos, apontados pelas famílias.
"Enterro lotado é sinal de prestígio", afirma Eliane, professora de
comunicação da Universidade Paulista (Unip), que chegou a acompanhar uma
cerimônia, anunciada em cartaz, na qual muitos não conheciam a
comerciante que havia morrido. A linguagem utilizada como chamariz
muitas vezes emprega termos solenes e adjetivos em desuso, provavelmente
seguindo padrões antigos da gráfica. A palavra enterro quase sempre é
substituída por funeral. No jornal "O Globo", o diretor Rigon também
observa a tendência de busca por textos tradicionais, oferecidos como
opção para quem procura o jornal - em geral, um conhecido da família.
"Mas já tivemos um anúncio em forma de poesia. E a cruz é cada vez menos
solicitada", diz ele.
Se o texto do anúncio é o começo da narrativa que será criada em
torno do morto, como diz o escritor Carlos Mello, as palavras podem ser o
fio que vão refazer o rombo aberto na comunidade à qual ele pertencia,
na visão da psicóloga Maria Helena: "Os rituais do luto são importantes
para isso. É muito sério quando eles são desconsiderados."
o defunto jaz,as lágrimas emudecem o choro e as palavras com aroma de cravo se desenham em um papel de cigarro
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