Mônica Cristina Corrêa*
Há 70 anos, num dia 6 de abril, surgia um livro que se tornaria um
fenômeno editorial, perpetuando-se como um mito: "O Pequeno Príncipe",
do escritor e também piloto francês Antoine de Saint-Exupéry. O livro
foi escrito, ilustrado e lançado em Nova York, onde Saint-Exupéry esteve
entre 1940 e 1943, desmobilizado e num exílio voluntário, após ter
participado de perigosas missões na Segunda Guerra. Quinhentos
exemplares em inglês chegaram às livrarias, junto a outros 260 em
francês - língua em que foi escrito. Na França, a obra foi lançada
apenas em abril de 1946, pela editora Gallimard. E postumamente:
Saint-Exupéry havia morrido em uma missão em 31 de julho de 1944, no mar
Mediterrâneo. Ele nunca conheceu o sucesso de seu último livro, que se
diferenciava dos demais por ser ilustrado e constituir-se num conto
fantástico, enquanto os anteriores se voltavam para o cotidiano da vida
de piloto numa época em que voar era praticamente uma proeza. Exceção ao
conjunto é o também filosófico "Cidadela", obra inacabada e póstuma.
Em 1947, "O Pequeno Príncipe" foi traduzido para o polonês; em 1949,
para alemão e italiano; em 1950, dinamarquês; em 1951, espanhol,
finlandês e holandês; em 1952, foi vertido para o português (no Brasil),
o hebraico, o sueco e assim por diante, até se somarem as mais de 250
traduções atuais, incluindo-se dialetos, abrangendo-se 26 alfabetos, 600
edições diferentes e as reimpressões. Em 2005, "Harry Porter" contava
traduções em 60 línguas.
É mais de 1 bilhão de exemplares publicados e estima-se que, em
média, sejam vendidos 5 mil livros por semana na França e 3,5 mil no
mundo. Trata-se de um texto literário de caráter planetário, fenômeno
que avança para o século XXI. Mas o que explicaria tamanho sucesso de um
título relativamente breve e ilustrado com desenhos do próprio autor,
que incitaram a criação de produtos derivados de toda sorte e um certo
culto dos personagens? Sempre será difícil precisar, até porque as
interpretações de críticos e leitores parecem tão plurais quanto as
individualidades.
"O Pequeno Príncipe" difundiu-se num cenário pós-guerra. Suas
premissas e a valorização da infância e do que ela poderia ter de
precioso - ingenuidade, tolerância, espontaneidade - podem ter
correspondido às ansiedades do Ocidente em reconstrução. Voltado às
crianças, pelo que demonstram os números, atinge todas as faixas
etárias.
Segundo o escritor e crítico franco-americano Philippe Forest, autor,
entre outros, de "Le Siècle des Nuages" (O século das nuvens, tradução
livre), "'O Pequeno Príncipe' é um livro destinado ao mesmo tempo aos
adultos e às crianças. O leitor pode descobri-lo muito jovem. E pode
continuar a ler e reler por toda a vida. Eis a força dos grandes textos.
Parece que era o livro preferido do filósofo Heidegger. Que uma obra
possa ser apreciada do mais complexo e mais absconso dos autores do
século XX e por um garotinho de 10 anos é algo muito excepcional".
Forest compara "O Pequeno Príncipe" a "Peter Pan", de James Barrie:
"Há muito em comum nessas obras. Atrás da leveza de uma narrativa para
crianças, trata-se de aventuras muito melancólicas que falam do luto
[Saint-Exupéry e Barrie perderam ambos um irmão criança]. São dois
contos paradoxais que ensinam a não crescer e a manter viva a criança
que fomos".
Além disso, é convergência entre alguns estudiosos que "O Pequeno
Príncipe" seja um livro abrangente em termos de conceitos. Stacy de la
Bruyère, biógrafa americana de Saint-Exupéry, observa que "O Pequeno
Príncipe" desafia categorias. Na linha tênue que separa uma fábula de
uma sátira, "a obra tem um pé em cada campo".
Não há, de fato, documentos do próprio Saint-Exupéry que deem muitas
pistas da gênese de "O Pequeno Príncipe". No entanto, várias versões do
manuscrito ou mesmo datilografadas fornecem indícios de sua elaboração. O
original encontra-se na Pierpont Morgan Library, em Nova York, ali
deixado por Sylvia Hamilton, com quem Saint-Exupéry se relacionou na
época. É um texto de difícil leitura, com as variantes das correções do
autor, e contém 35 desenhos que foram descartados na edição original.
Quatro outras versões foram localizadas, com correções datilografadas
por Saint-Exupéry. Uma está em Paris, na Biblioteca Nacional, doada pela
pianista Nadia Boulanger (amiga do autor); outra em Austin (Texas), que
foi confiada pelo piloto a seu tradutor americano Lewis Galantière; uma
terceira, de origem desconhecida, foi vendida em Londres em 1989
(contendo mais de cem correções do autor e dois desenhos a lápis
incluídos) e, por fim, uma quarta versão é de propriedade do legatário
de Consuelo, mulher de Saint-Exupéry.
Quem conhece o restante da obra do piloto-escritor nota que os temas
tratados no conto estão presentes, de modo mais ou menos diluído, nos
demais textos. A rosa desprotegida, a atenção à ecologia quando tal
conceito ainda não existia, a solidão, o luto, a morte, sobretudo a
dicotomia entre o visível (a matéria e a materialidade das coisas) e o
invisível (essência das coisas ou os sentimentos) num autor de formação
católica que acreditava nos valores acima dos objetos.
Virgil Tanase, dramaturgo romeno que acaba de lançar uma biografia de
Saint-Exupéry na França, diz que é inegável que para o francês o
mistério da existência é uma equação de simplicidade bíblica: "A bola de
carne que cresce, torna-se adulta e morre é um sopro sobre um fio
tênue, mas durável, que escapa ao tempo: o espírito". No entanto, se há
consenso em que a obra é também autobiográfica - a presença do deserto e
do avião o atestam -, os especialistas reconhecem que se trata de um
livro que pode nem sempre remeter a seu autor. Assim, diz Stacy de la
Bruyère: "Mais do que nunca, acho que o Pequeno Príncipe obscurece seu
autor". Virgil Tanase está alinhado com ela: "A existência de
Saint-Exupéry foi dedicada ao 'espírito', mas, ao mesmo tempo, 'O
Pequeno Príncipe' que nos fala dele não precisa do autor para nos
mostrar o caminho certo". E prossegue: "O texto - que tem traços da vida
de Saint-Exupéry, o que ocorre com todos os autores - funciona por si
mesmo". As estatísticas que o digam.
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* Mônica Cristina Corrêa, doutora em língua e literatura
francesa pela USP, é representante da Succession Saint-Exupéry em Santa
Catarina
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