sábado, 6 de abril de 2013

Ricardo Reis? Quem?

Carlos Felipe Moisés*

 
Hoje, ninguém ignora o que são "heterônimos", marca registrada de Fernando Pessoa (1888-1935): diferentes poetas, cada qual com personalidade e estilo próprios, todos criados pelo mesmo autor. As diferenças são tantas que quase todo leitor tem o seu favorito. Para uns, é Álvaro de Campos, engenheiro naval, irrequieto, sintonizado com a agitação da grande cidade; sua meta na vida é "sentir tudo de todas as maneiras". Para outros, é Alberto Caeiro, camponês tranquilo, que quer apenas sentir a natureza e não pensar; ele acha que "há metafísica bastante em não pensar em nada". Para outros mais, é o próprio Pessoa, o dos poemas patrióticos, que trazem reflexões como esta: "Tudo vale a pena, se a alma não é pequena".

Nosso poeta passou a vida concebendo heterônimos, várias dezenas, mas completos são só três - quatro, se considerarmos o próprio como um deles. Logo, na lista acima um ficou de fora: Ricardo Reis, médico que nunca exerceu a profissão, autor de umas odes inspiradas em Horácio (século I a.C.). Ficou de fora porque até hoje não conheci ninguém que dissesse: Ricardo Reis? Ah, é o meu favorito. Não é uma boa razão para conhecê-lo de perto?

"O dr. Ricardo Reis nasceu dentro da minha alma", diz o seu criador, "no dia 29 de janeiro de 1914, pelas 11 horas da noite. Eu estivera ouvindo no dia anterior uma discussão extensa sobre os excessos, especialmente de realização, da arte moderna. Segundo o meu processo de sentir as cousas sem as sentir, fui-me deixando ir na onda dessa reação momentânea." Assim, Reis vai ganhando vida e, através dele, Pessoa desenvolve uma teoria neoclássica (ele esclarece) "segundo princípios que não adoto nem aceito".

Então o que temos é uma "reação" contra a arte moderna, cujos "excessos" o poeta repudia. E arte "moderna", no caso, é a vanguarda do início do século passado, irreverente, rebelde a todas as regras. Em represália, Reis escreve uma poesia marcada por rigorosa disciplina: formas fixas, ritmo bem medido, vocabulário erudito, ordem invertida e muita mitologia: "As rosas amo dos jardins de Adônis,/ Essas volucres amo, Lídia, rosas".

Quer dizer: "Amo as rosas dos jardins de Adônis,/ Amo, Lídia, essas rosas volucres". Adônis é um belo jovem, por quem Vênus, a deusa do amor, se apaixonara, e ele morre numa caçada; do seu sangue, espalhado na terra, brotam as primeiras flores da primavera. "Volucre" (latim) quer dizer volátil, fugaz.

Mas, já em 1914, quem estaria disposto a interromper a leitura, desmontar e remontar as frases e fazer pesquisas? Hoje, então, quase um século depois... E Pessoa tinha consciência disso. O que ele pretende é nos oferecer o desafio, e a oportunidade, de aperfeiçoar as qualidades das quais somos cada vez mais carentes: capacidade de concentração, atenção ao detalhe, disciplina interior, paciência de ir chegando aos poucos ao verdadeiro sentido das coisas. Autodomínio, enfim, em vez da submissão aos desejos que se multiplicam sem cessar, e são logo descartados.

Epicuro (341-270 a.C.) pregava que o homem deve buscar, na vida, o máximo de prazer. Para nós, modernos, isso quer dizer quantidade, fartura, abundância, ausência de limites. Mas não assim para Pessoa-Reis. "Quem não se contenta com pouco não se contenta com nada" (Epicuro). Querer todos os prazeres só resulta em dor e sofrimento: o homem é um ser insaciável. Logo, buscar o prazer quer dizer evitar a dor. Como? Satisfazendo-se com pouco. Nós, modernos, nos recusamos a chamar isso de "prazer".

A mesma Lídia, a das "rosas volucres", é várias vezes interpelada pelo poeta, que lhe dá conselhos e, em dado momento, convida: "Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do regato". E acrescenta: "Enlacemos as mãos". Não é um claro preâmbulo aos prazeres do amor? Mas em seguida ele reconsidera: "Desenlacemos as mãos". Se isso o surpreende, leitor, imagine a surpresa da pobre Lídia... Mas no fim ele explica: se eu morrer antes, ele diz, "lembrar-te-ás de mim depois/ Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,/ Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos". Se ela morrer antes, o resultado será o mesmo: nenhum deles sofrerá.

Para a sensibilidade moderna, um absurdo; para Ricardo Reis, a satisfação possível: o controle das paixões e dos instintos. "Abdica e sê rei de ti próprio", afirma. Para ele, os "excessos" da arte moderna são apenas um indício da decadência geral da sociedade. E isso não é fenômeno recente, ele adverte, começou com o advento do... cristianismo, "mera heresia pagã, produto de uma degenerescência nas ideias e nos sentimentos de onde deriva o estado perpetuamente mórbido da nossa civilização". O cristianismo, diz Reis, é "um sistema religioso em que tomam relevo os sentimentos íntimos de cada indivíduo, em que o interesse do espírito se concentra em seus próprios movimentos".

Para ele, todos os males do mundo resultam do subjetivismo ao qual fomos condenados pela religião cristã, tornada hegemônica: cada cristão é obrigado a viver dentro de si o seu deus, sem jamais saber se é o mesmo deus do vizinho ao lado, tão cristão quanto ele. Daí a desagregação e a dispersão, não só na esfera religiosa, mas em tudo o mais. Cada homem é um ser à parte, incapaz de comungar com os outros homens ou com a natureza. Neste nosso mundo, solidariedade virou uma questão de "sentimento", quando deveria ser, como foi antes de Cristo, uma questão de razão e consciência.

A solução, segundo Reis, é a volta ao paganismo, único momento da história em que o homem se sentiu plenamente integrado na realidade de todas as coisas. Mas como não seria possível simplesmente apagar 20 séculos de cristianismo, ele propõe que Cristo seja aceito como um deus a mais, vindo somar-se aos outros deuses do Olimpo.

Um dos seus poemas mais controvertidos diz: 
"Não a ti, Cristo, odeio ou te não quero.
Em ti como nos outros creio deuses mais velhos.
Só te tenho por não mais nem menos
Do que eles". 
E, umas estrofes adiante: 
 "Cura tu, idólatra exclusivo de Cristo, que a vida
É múltipla e todos os dias são diferentes dos outros,
E só sendo múltiplos como eles
Estaremos com a verdade". 
Mas sua conclusão é pessimista: 
"O paganismo morreu. 
O cristianismo, que por decadência 
e degeneração descende dele, 
substituiu-o definitivamente. 
Está envenenada para sempre a alma humana".

Conclusão: Reis não representa uma volta ao passado, mas sim um fundo mergulho neste nosso tempo, que, com sua avidez e seu sonho de liberdade ilimitada, nos condena à eterna insatisfação. É uma crítica implacável à nossa leviandade, ao nosso egoísmo, ao nosso fanatismo. Se não for por isso que todos fogem dele, é uma boa razão, quem sabe, para que até hoje ninguém dissesse: Ricardo Reis? Ah, é o meu favorito.
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* Carlos Felipe Moisés é poeta ("Noite Nula", 2008) e crítico literário ("Tradição & Ruptura", 2012). Foi o curador da exposição "Fernando Pessoa: Plural como o Universo", no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, em 2010-2011

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