domingo, 7 de abril de 2013

Força da palavra

LAURA GREENHALGH*

Betty Milan, No livro Carta ao Filho, a autora fala sem pudor de episódios de sua vida e do contato com Lacan

Em Carta ao Filho, a coragem de contar "quase" tudo - "pois jamais se deve contar tudo", adverte Betty Milan - passa não só pelas sessões de análise com o mestre Jacques Lacan, mas pela teia de contatos com uma intelectualidade que encarnou a geração 68. "E que mudou o mundo", acrescenta a autora da epístola. "Hoje os filhos não se dão conta do que seus pais fizeram, de como tivemos que quebrar barreiras." Betty Milan tem obras publicadas em vários países, como o romance O Papagaio e o Doutor, inspirado em seu contato com Lacan, e o ensaio O País da Bola, sobre futebol. Também assinou as crônicas de Paris Não Acaba Nunca e as entrevistas de A Força da Palavra, coletânea de conversas memoráveis com nomes como Octavio Paz e Jacques Derrida (todos pela ed. Record). Vivendo parte do tempo em São Paulo, parte em Paris, fundou e dirige a companhia teatral Vozes, marcando sua longa relação com a dramaturgia. Relação iniciada nas experiências em psicodrama com Zerka Moreno, no Public Theater of New York. É também autora de peças, entre elas, Paixão e a Vida É Um Teatro. 

Com tudo o que tem de revelador, você diria que seu livro nasce de um ato de coragem?
Sim. A coragem de falar dos meus sentimentos. Mãe não fala disso ao filho. Sendo uma figura sacralizada, impõe-se a ela o silêncio. Claro, nunca se conta tudo. Nem se deve. Contar tudo é uma forma de usar o outro indevidamente. Mãe e filho também não têm que falar de seus relacionamentos sexuais, algo que diz respeito a cada um. Mas isso não se aplica aos sentimentos. Até porque filhos sempre sabem a verdade. Se for inútil mascará-la, melhor legitimá-la. Mãe tem uma missão educativa, então imaginamos que falar dos nossos tropeços, erros e mesmo de um adultério é algo que pode inviabilizar essa missão. É como se a mãe não estivesse mais autorizada a educar. Só que, escrevendo esse livro, me dei conta de que faz parte da missão educativa da mãe ensinar filho a escutar. E o pai, onde fica nisso tudo? Não me detive na figura paterna, embora ela esteja presente o tempo todo, e assim tem que ser. Do contrário, a relação mãe-filho torna-se fusional.

Você escreve num momento em que o pai não está mais em cena, por ser falecido, você e seu filho estão rompidos e nem se falam, enfim, o desenho da família nuclear parece desfeito.
Meu filho vinha me censurando por ser excessivamente apegada e ter uma demanda infinita sobre ele. Resolvi escrever. Na verdade, a carta cumpre o papel do pai. Ela é o terceiro elemento na relação. Ela instaura a paz. É com a simbolização dessa relação que a mãe pode cumprir um papel dificílimo: cuidar do filho ao mesmo tempo em que está se separando dele. E dizendo "vai". Pega o seu caminho. 

Antes, porém, você revê toda a sua vida para o filho.
A carta começa tratando dos nascimentos em família e a intenção foi refletir até que ponto somos determinados pela história do nascer. Sim, porque já nascemos com uma história. No meu caso, vim ao mundo depois de um irmão natimorto, ocupei o lugar deste primogênito, sendo uma mulher. Isso me traz uma identificação incompleta com o sexo feminino, embora tenha sempre me relacionado com homens. Eu era "o primeiro filho". Assim fui criada. Quis mostrar que, mais importante do que o sexo biológico, é a fantasia (em termos psicanalíticos) que a pessoa tem sobre a sua sexualidade. Na minha família, cresci autorizada a fazer o que os filhos homens fazem. Isso explica o fato de, aos 18 anos, cursar uma faculdade de medicina, algo raro para as moças do meu tempo e mais raro ainda numa família árabe em que as mulheres eram educadas para o lar. Inverti isso. Hoje os filhos não se dão conta da subversão que a geração de seus pais ousou fazer, 50 anos atrás. Falo de uma geração que subverteu a ordem e quebrou barreiras. Se agora nossos filhos optam pela fidelidade em seus relacionamentos, isso acontece porque nós mostramos, lá trás, que infidelidade não é crime.

Essa filha que ficou no lugar do filho tem a ver com o comentário que Foucault fez a seu respeito: "Você é tão afável quanto um rapaz"?
Ele percebeu essa ambivalência quando eu tinha 18, 19 anos. Foucault veio a São Paulo para uma conferência na USP e (o filósofo José Arthur) Giannotti convenceu-o a passar um fim de semana no Guarujá. Eu estava neste grupo de amigos. Foucault já havia escrito a História da Loucura, trabalhava numa obra sobre sadomasoquismo. Anos mais tarde fui procurá-lo no Collège de France, onde dava aulas, e ele me convidou para jantar. Esse tipo de reciprocidade parece ter desaparecido hoje em dia. 

Você viveu com intensidade a geração 68. Mas foi criada no seio de uma família árabe tradicional, abastada...
Tudo começa com um avô mascateando. Depois veio um lado materno abastado, com avós vivendo em palacete, e do lado paterno, uma família que estava se construindo economicamente, mas que já podia dar educação boa aos filhos. Nesse período e do ponto subjetivo, o que me vem é a angústia da separação. Eu era muito pequena quando minha mãe ficou quase cega. Fui com meus pais para Chicago, para que ela se tratasse, e lá ficamos um ano até sua cura. Mamãe vivia agarrada a mim, senti essa angústia forte. Os primeiros sinais de rebeldia iriam se manifestar no Colégio Bandeirantes, quando participei da fundação do grêmio e fui convidada a me retirar da escola. Entrei na medicina da USP, porém me relacionava com os colegas da Filosofia e, se não cheguei a tomar parte em organizações políticas, entrei para uma militância cultural. Como a revista aParte, que fiz com Flávio Império e Sérgio Ferro. Nunca me identifiquei com certos valores da família árabe. Eu não frequentava as festas do Sírio Libanês, sempre gostei da companhia das empregadas, trabalhava na mesa da cozinha. Também nunca bati de frente com essa família. Sabia levar.

Como foi admitir, na carta, que cometeu adultério quando casada com o pai do seu filho?
Vivi um triângulo amoroso e o pai do meu filho sabia disso. Dizia que eu não deveria encarar a situação com sentimento de culpa - ele, que era um autêntico libertino, algo caro à cultura francesa. O próprio Lacan dizia que esse jeito francês de lidar com amantes era uma forma de civilidade. Mas foi meu filho quem um dia bateu na minha porta, eu lhe disse que estava com aquela outra pessoa, e ele pediu para entrar. Hoje se dão muito bem. Nos grandes casos de adultério da literatura, Madame Bovary ou Anna Karenina, por exemplo, essas heroínas acabam mortas. Na carta tento mostrar que o adultério é algo a que nós, humanos, estamos sujeitos e tanto por isso não pode ser punido como crime. A grande sorte nos relacionamentos é a fidelidade. Mas ela é rara.

E quando você assume ter feito um aborto mais jovem?
Não tive uma militância feminista, mas este ponto para mim é capital. Decidi falar. Contei de uma época em que as mulheres, lá na França, interrompiam a gestação em Londres, pois não havia legalização alguma em solo francês. Quis refletir sobre essa identificação do ser com a vida biológica, quando se esquece que a vida não faz sentido se o desejo dela não existe. 

Qual a importância de Jacques Lacan na sua trajetória?
Meu filho não teria nascido se eu não tivesse feito formação analítica com Lacan. Começa daí. Porque sendo o "primogênito", eu não me permitiria engravidar. E, mesmo engravidando, não toleraria não poder nomear o filho. Isso foi resolvido na análise. Foram mais de quatro anos, tempo no qual fui assistente de Lacan na Universidade de Vincennes. Outra coisa importante que veio com Lacan foi a relação com a língua. Como vivi entre dois idiomas, e levei isso às últimas consequências ao traduzir Lacan para o português, acabei tendo um olhar sobre a língua materna diferente. Enfim, Lacan me deu o filho e a escrita. Não é pouca coisa. 
"Lacan só entendia o que eu falava na sua língua. Meu mundo se limitava ao que era traduzível." Você diz isso na carta. 

Quer dizer, você configurava a sua fala nas sessões em função da escuta dele?
Veja que problema isso coloca ao processo analítico. Lacan até tentou me passar para uma colega dele, de origem portuguesa, mas vimos que haveria problema de transferência. Daí percebeu que eu só faria formação com ele, mais ninguém. E topou. Foi mesmo uma aventura. Também trabalhamos no Hôpital Sainte-Anne, grande instituto psiquiátrico francês onde ele fazia as famosas entrevistas públicas dos doentes. Conversava com o paciente, um psicótico, diante de alunos, médicos, professores de Vincennes. Era um lugar de alto aprendizado.

Quando foi a última vez em que esteve com ele?
Foi quando me chamaram para votar a dissolução da Escola Freudiana de Paris. Lacan precisava de votos para dissolver aquilo. Nessa ocasião, o câncer de que sofria já estava avançado, então se deu um encontro penoso, porque ele não me reconheceu. Era um fantoche na mão de alguns, algo triste.

Por que decidiu pesquisar o mundo do carnaval, do futebol, da umbanda?
Quando voltei ao Brasil, senti que precisava escutar o País. Um outro país que não fosse aquele da família árabe. Iniciei errâncias intelectuais, algo que sempre se repete em minha vida, e acabei cruzando com um florilégio de pessoas lindas: Joãosinho Trinta, Gilberto Freyre, Zé Celso Martinez Corrêa. Quis escutar o Joãosinho porque era um homem de ideias, pouco valorizado no Brasil. Por anos fui ao barracão ver como ele construía o carnaval. Descobri o "brincar" como a paixão particular do brasileiro. Na França, é o "droit". Na Espanha, "el honor". Na Inglaterra, "humour". E nós somos o brincar. Depois, enveredei pelo mundo do futebol, foi escutar homens inteligentíssimos, como Leônidas da Silva, e fiz O País da Bola, livro considerado um dos melhores do ano na França, exatamente quando o Brasil perdeu a Copa lá. Com Gilberto Freyre, fui ver o que pensava da cultura do brincar, que ele associava à cultura negra. Já o encontro com Zé Celso aconteceu em 1991, quando lancei aqui o romance inspirado na formação com Lacan, O Papagaio e o Doutor. O livro mexeu com Zé Celso, que acabou escrevendo na imprensa sobre o "strip-tease da dra. Betty Milan". Daí nasceu uma longa convivência com o Teatro Oficina. Hoje tenho minha pequena companhia de teatro, na qual fazemos algo diferente do Zé Celso. É teatro intencionalmente despojado, cujo apoio reside na força da palavra. 

Entre tantas histórias e tantas confissões, qual foi a reação do seu filho ao ler a carta-livro?
Leu com interesse. Sua colaboração se tornou essencial, porque fez perguntas, deu sugestões. Lembrou, por exemplo, que em nossa casa nunca se ameaçou filho de ir para internato, essa punição não havia. Surpreendeu-se com minha disposição otimista diante do mundo e reconheceu que fui elegante ao narrar toda minha história de vida. É preciso dizer que comecei a escrever a carta como um consolo diante da dor da separação. E não pretendia transformá-la em livro. Mas como foi adquirindo uma forma interessante, aceitei publicá-la. O curioso é que, no mesmo período em que eu escrevia a carta, meu filho fazia um documentário sobre a avó, minha mãe, uma mulher de 95 anos que vive para falar do amor. Enfim, nós nos encontramos na mesma busca pelas origens. Procurávamos a independência dos laços familiares, não a supressão deles. Foi um grande momento. 

E para você, o que fica dessa experiência pessoal e literária?
Eu precisava lidar com essa mãe que tudo pode, que dá conta de tudo. Chega. Se já liberamos a mulher, agora temos que liberar a mãe. De certa maneira, o feminismo atuou em favor dos homens, ao sobrecarregar a mulher. Comunico ao meu filho: estou me separando dessa mãe fálica, onipresente e masoquista. Penso em Sêneca ao lhe dizer que me predisponho a viver intensamente, com meus pares, como a única maneira de combater o tempo que passa. Acho que estou pronta para escrever um novo romance.
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* Psicanalista e escritora
Fonte:  http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,forca-da-palavra,1017996,0.htm 07/04/2013
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