VERISSIMO*
"Prezado M:
Recebi o e-mail com seu mais novo poema e entendo seu entusiasmo.
Realmente, é um raro exemplo de exteriorização poética da angústia
moderna, a começar pela reiteração inicial:
'Eu mato, eu mato...'.
A brutal assertiva evoca à perfeição a têmpera destes dias, o nosso
'zeitgeist'. Perderam-se as ilusões com a justiça, com as esperanças de
regeneração e com todas as instâncias jurídicas. Vivemos num deserto de
valores morais. O poeta não diz 'eu reprimendo', 'eu castigo', 'eu mando
prender', 'eu condeno'. Diz e repete 'eu mato'. Que retribuição se pode
esperar onde a justiça não faz justiça e a cadeia não segura o ladrão? O
poeta ameaça fazer sua própria justiça porque não existe outra.
Revertemos ao animal primevo com as presas à mostra, num ricto de
vingança selvagem. Uma hiena ganindo entre as ruínas de uma civilização
falida.
Segue o poema:
'... quem roubou minha cueca...'.
Há aqui algo que evoca Eliot, com seu constante recurso ao
aparentemente banal - no caso, a cueca - em contraponto a alusões
clássicas e míticas, e que acabou sendo um viés da poesia moderna
(Auden, Drummond). Não seria, talvez, demais ler a cueca como metáfora. A
cueca representa o que temos de mais íntimo, recôndito, profundo. O que
temos de mais nosso. O que o 'zeitgeist' nos roubou. Ou seja: a nossa
alma. Onde está 'cueca' leia-se 'alma'. Sem a cueca ficamos nus. Sem a
alma também estamos reduzidos a apenas nosso corpo.
Mas quem roubou a nossa cueca/alma? Quem trouxe nosso corpo desprotegido para este deserto?
Quem merece a raiva do poeta?
Que a raiva é merecida fica evidente na última linha do verso:
'... pra fazer pano de prato!'.
A suprema degradação. Nossa alma secando pratos. O fim de uma geração
que conseguiu chegar à Lua mas se perdeu no caminho da privada. Quem é o
culpado? Também queremos ganir de indignação como o poeta mas não
sabemos em que direção. Para o alto? Para o lado? Para que lado? Quem,
afinal, roubou nossa cueca pra fazer pano de prato?
Mas, enfim, poesia é isso mesmo, não é não? Perguntas sem respostas.
Se houvesse resposta não seria poesia. Só me resta invejar o seu poder
de síntese e a síntese do seu poder, que reduz toda a condição humana a
um verso singelo, e o Universo a um gemido terminal.
Parabéns!
E um grande abraço do L."
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"Prezado L:
Gostei muito do que você escreveu sobre o verso que mandei, mas
preciso fazer uma confissão: mandei o verso errado. Queria que você
comentasse o poema caudal em 170 estrofes que me custou quase um ano de
trabalho mas me atrapalhei (sou um pré-eletrônico, você sabe) e acabei
mandando a letra de uma antiga marchinha de carnaval que, sei lá por
que, meu neto de 12 anos armazenou no meu laptop. Mas obrigado assim
mesmo. Grande abraço, M."
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* Luis Fernando Veríssimo. Escritor gaúcho. Cronista.
Fonte: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,poemas,1018027,0.htm
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