João Pereira Coutinho*
Só canalhas amam a Humanidade. E só grandes homens são capazes de exercer a sua humanidade
QUE SORTE, Brasil: nas livrarias há uma nova edição das "Reflexões sobre
a Revolução na França" (Top Books), o clássico de Edmund Burke que
praticamente inaugurou o conservadorismo moderno. Digo "nova edição"
porque existia uma antiga, da Universidade de Brasília, que li e não
gostei.
Essa nova, pelo contrário, tem tradução competente de Eduardo Francisco
Alves e permite revisitar os argumentos centrais de Burke, não apenas
contra a Revolução Francesa mas contra o pensamento utópico e suas
consequências potencialmente destrutivas.
Deixarei esses argumentos para um próximo artigo. Hoje, fico com
Jean-Jacques Rousseau. Nas "Reflexões", Rousseau é tratado com uma
dureza exemplar: o "filósofo da vaidade", dirá Burke. Alguém que era
capaz de proclamar em público o seu amor pela humanidade -mas, em
privado, não hesitara em abandonar os filhos na roda dos enjeitados.
Durante décadas, acadêmicos sofisticados nunca perdoaram essa crítica
pouco sofisticada de Burke. Conheço alguns. A filosofia de Rousseau é
uma coisa, dizem eles; sua relação com os filhos, outra. Nenhum
intelectual deve ser julgado à luz da sua conduta privada.
Concordo. Até certo ponto. Anos atrás, ao ler a autobiografia que o
grande cronista inglês Auberon Waugh escreveu ("Will This Do?", Carroll
& Graf, 288 págs.), encontrei um retrato demolidor sobre o pai, o
inultrapassável Evelyn Waugh.
Uma passagem do livro ficou célebre: acontece quando, depois da Segunda
Guerra Mundial e com a Inglaterra a viver os horrores do racionamento de
comida, o pai Evelyn come na frente dos filhos esfaimados todas as
bananas disponíveis na mesa de jantar.
Era a primeira vez em anos que as crianças viam bananas. E foi a última vez que Auberon levou a sério o moralismo do pai.
Entendo a desilusão do filho. Mas eu não sou filho de Evelyn Waugh. Sou
leitor. E, como leitor, não existe qualquer abismo entre a crueldade
privada e a sua colérica persona pública.
Nos diários de Evelyn Waugh, os filhos só existem como objeto de
desprezo ou coisa pior. E, sobre os romances, o óbvio: Evelyn Waugh
nunca enganou. O seu desprezo sarcástico pela Humanidade (com maiúscula)
é a medida de toda a obra.
Minha náusea é só com os que enganam: intelectuais que gostam de dar
sermões humanistas ao público lacrimejante (como nas peças de Arthur
Miller) e depois esquecem os seus filhos com síndrome de Down em
instituições psiquiátricas, rasurando o fato das suas respectivas
memórias (idem Arthur Miller).
Essa hipocrisia repugnava igualmente Burke. Não apenas por motivos
éticos. Também por motivos políticos: o problema com os "filósofos da
vaidade" não está simplesmente na dissonância entre o que dizem e o que
fazem.
O problema está na forma como, recusando pensar politicamente a partir
do seu "pequeno pelotão" (uma ideia que Burke recolheu em Adam Smith),
eles fogem para grandes categorias abstratas (a humanidade, a igualdade,
a raça, o proletariado etc.) e infligem transformações radicais e
violentas sobre a exata realidade da qual fugiram.
Em rigor, Burke não estava preocupado com os pobres filhos de Rousseau. O
que ele não podia tolerar era que a atividade política pudesse ser
dirigida por alguém que, em nome da sua própria vaidade, trocara as
circunstâncias reais por puras fantasias dogmáticas.
Só canalhas amam a Humanidade (com maiúscula). E só grandes homens são
capazes de exercer a sua humanidade (com minúscula). Homens como o
anônimo Manuel Condez, 60, um ex-bancário que ajudou o filho com
paralisia cerebral a terminar o curso universitário.
Conta o jornalista Jairo Marques, em excelente matéria para esta Folha
no último domingo: "O pai assistiu a todas as aulas, anotou as lições
dadas pelos professores, auxiliou o filho na feitura das provas
escrevendo no papel aquilo que ele lhe soprava".
E quando homenagearam o pai no dia em que o filho Marco, 26, recebeu o diploma, o pai respondeu: "Não fiz nada demais".
Não fez nada demais: entregava mais depressa os destinos de um governo a
esse homem do que a grande parte dos meus colegas literatos.
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* Colunista da Folha
Fonte: Folha on line, 09/04/2013
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