João Pereira Coutinho*
Continuamos bestas de carga iguais às que era possível contemplar em plena Revolução Industrial
1. Ironia: a única coisa que tolero em Karl Marx
é, bem vistas as coisas, o genro. O nome do cavalheiro é Paul Lafargue e
o seu "Direito à Preguiça" é texto que guardo junto à cama. Para ler e
reler quando a ociosidade me ataca. Que nos diz Lafargue?
O óbvio: haverá coisa mais triste do que uma existência inteiramente
dedicada ao trabalho? Sobretudo a um trabalho que nos escraviza e
desumaniza?
Por isso Lafargue defende: mais importante do que os "direitos do homem"
são os "direitos à preguiça". Que um dia, escreve ele, serão
respeitados por uma civilização tecnologicamente avançada. Trabalharemos
três horas, não mais. As máquinas farão o resto por nós.
Sorrio sempre quando leio esse pedaço de otimismo. Lafargue escrevia no
século 19. O que diria ele se visitasse a Europa do século 21?
Em Portugal, por exemplo, a crise econômica levou a mudanças na jornada
de trabalho. O país vai trabalhar agora, em média, 40 horas semanais.
Uma hora a menos que na Alemanha, que lidera o ranking com 41.
Os lusos não serão caso único. Espanha, que trabalha em média 37 horas,
prepara-se também para imitar o exemplo germânico. Como? Abolindo
almoços longos. Abolindo a "siesta" depois do almoço. Abolindo jantares
tardios. Abolindo a possibilidade dos nativos se deitarem tarde e de
acordarem tarde. Em suma, abolindo Espanha.
Uma comissão parlamentar prepara-se para estudar todos esses "abusos"
--os "abusos" que eu mais invejava em "nuestros hermanos"-- de forma a
produzir uma legislação laboral que transforme os espanhóis em alemães.
Meu Deus: haverá maior crime do que transformar um povo, qualquer povo, à imagem e semelhança da Alemanha?
Amigos liberais, que olham com ternura para as minhas idiossincrasias
conservadoras, dizem-me que não há alternativa: a Europa tem que
trabalhar mais para produzir mais e ser mais competitiva a nível global.
Curiosamente, eu não contesto a lógica do raciocínio. Apenas o que esse raciocínio diz sobre a nossa patética civilização.
Sim, o progresso tecnológico cumpriu-se. Não se cumpriu a libertação
humana que Lafargue imaginava. Com diferentes trajes e cenários,
continuamos as bestas de carga iguais às que era possível contemplar em
plena Revolução Industrial.
2. Gosto de viver em cidades porque gosto de
caminhar em cidades. Também aqui sou o anti-Rousseau por excelência. No
seu "Devaneios do Caminhante Solitário", o filósofo confessa que existem
poucos prazeres comparáveis a uma caminhada pelo campo. Subscrevo tudo,
exceto o campo.
Cidades. Carros que passam. Esse é o meu filme. E, por falar em filmes,
haverá caminhada mais bela do que no filme"Paris", de Cédric Klapisch,
que talvez explique as minhas paixões pela vadiagem urbana?
O filme tem duas histórias paralelas. A primeira é a de um professor (o
sempre magistral Fabrice Luchini) que se apaixona por uma aluna e, sem
surpresas, é abandonado por ela. Um solitário angustiado que gosta de
caminhar pelas ruas de Paris sem nunca se aperceber desse fato redentor:
o fato de estar vivo e de poder caminhar por Paris.
Pierre é o segundo personagem da segunda história. Doente, gravemente
doente, ele regressa para a casa da irmã (Julliete Binoche, "mon amour")
por não ter onde ficar até a hora de um transplante salvador.
A irmã acolhe-o. E, no final, quando a hora chega, eles despedem-se por
imposição de Pierre e o táxi parte pelas ruas de Paris. A caminho do
hospital.
É esse o momento em que o professor e Pierre se encontram. O primeiro,
caminhante meditativo, perdido como sempre nas suas tristezas mundanas. E
o segundo, que olha para ele através do vidro do carro, invejando o
destino daquele pobre diabo. Invejando o luxo que é caminhar por Paris
--sem hora, sem rumo. Sem cirurgia marcada.
Não sei quantas vezes penso nessa sequência quando caminho por Lisboa
com o peso dos meus pequenos dramas. Mas também reparo que há carros que
passam por mim. E rostos que olham para mim. Não sei o que dizem. Não
sei em que pensam.
Mas suspeito que talvez um dia alguém passará por aquele pobre diabo,
invejando a sorte que ele tem por simplesmente caminhar pela cidade.
-------------------
* Jornalista, escritor, historiador e comentador e cientista político português.
FONTE: Folha on line, 01/10/2013
Imagem da Internet
Nenhum comentário:
Postar um comentário