quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Consumo e felicidade

Dulce Critelli*


[...] A SOCIEDADE DE CONSUMO
PRECISA PERMANENTEMENTE PROVOCAR NOSSA INSATISFAÇÃO
COM O QUE TEMOS E
ATIÇAR NOSSO DESEJO
PELO QUE AINDA
NÃO TEMOS

Patrick Terrien, chef francês e diretor da escola de culinária Le Cordon Bleu, declarou à coluna "As últimas 10 coisas que comprei", do caderno Vitrine, da Folha, ter comprado champanhe, flores, foie gras, laranjas, cogumelos selvagens, água, jornal, pão, um CD e entradas para o cinema.

O que uma pessoa compra dá uma boa noção de como ela vive. No caso do chef, tudo o que ele comprou foi para o consumo em família, para presentear um amigo e sair com a mulher.

Comprou coisas que não duram nem podem ser exibidas, mas podem tornar a relação entre as pessoas próximas a ele mais agradável e apetitosa.

A lista me surpreendeu, pois já havia notado que vários entrevistados da coluna falam de objetos que exibem seu poder aquisitivo, de modo a agregar valor a si próprios, digamos, convertendo-se em produtos.

Tornar a si mesmo vendável é, para o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, uma das tarefas mais importantes que as pessoas têm numa sociedade de consumo, além de conquistar a felicidade. Para ele, a felicidade é o principal objetivo da sociedade de consumo.

De fato, se estivéssemos na Grécia Antiga, nosso objetivo seria alcançar fama e glória. E, se vivêssemos na sociedade medieval, o fim de todo indivíduo seria cumprir a doutrina cristã para salvar sua alma.

Mas, na sociedade de consumo, vivemos para sermos felizes por meio do que adquirimos. Paradoxalmente, por meio daquilo que descartamos.

A aquisição de mercadorias satisfaz nossos desejos e providencia nossa felicidade. Mas os desejos são inesgotáveis. Brotam de todo contato que temos com o que existe no mundo. Um dá lugar a outro, e satisfazê-los é tarefa impossível.

Como as mercadorias são produzidas com a finalidade primeira de serem compradas, a sociedade de consumo precisa permanentemente provocar nossa insatisfação com o que temos e atiçar nosso desejo pelo que ainda não temos.

Toda propaganda de alguma mercadoria sugere, subliminarmente, que aquela que temos está ultrapassada e não pode nos oferecer o que a nova poderá. Não comprá-la é ficar em falta com nós mesmos e não pertencer ao círculo especial dos que já a adquiriram.

Enredados nesse moto contínuo de insatisfação/descarte/consumo, compreendemos a máxima da vida: sempre seremos felizes por pouco tempo.

Toda suposta felicidade antecipa uma infelicidade. E, enquanto saltamos de uma infelicidade a outra, a almejada felicidade passa a ser um breve intervalo, sempre imperceptível.

A felicidade, substituída pela satisfação de desejos nunca aplacáveis, jamais é experimentada. O que nos resta é a ansiedade da felicidade.

As compras do chef francês sugerem que ele se desvia dessa sedução consumista. Fruir, mais do que ter. E não apenas o sabor do foie gras ou dos cogumelos mas o prazer de repartir com amigos e familiares pequenos prazeres. Celebração e simplicidade.

*DULCE CRITELLI , terapeuta existencial e professora de filosofia da PUC-SP, é autora de "Educação e Dominação Cultural" e "Analítica de Sentido" e coordenadora do Existentia - Centro de Orientação e Estudos da Condição Humana
Fonte: Folha, 12/11/2009
dulcecritelli@existentia.com.br

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