Graça Taguti*
"Morrer tão completamente.
Que um dia ao
lerem o teu nome num papel perguntem:
Quem foi?"
- Manuel Bandeira -
Se tem algo que desperta muita ira em nós é o descontrole sobre a
hora da nossa morte. E sobre o momento da nossa concepção e nascimento.
Sentimo-nos, paradoxalmente, cada vez mais empoderados, tendo como
cúmplices as sucessivas invenções das novas tecnologias. O domínio sobre
o universo, objetos coisas e pessoas. A era glass, a era touch e a era
do controle (a última apontando a implacável vigilância da internet
sobre nossa minuciosa intimidade) convivem na atualidade, aparentemente
de mãos dadas. Fato é que simulando nosso império volitivo e ditatorial
sobre joysticks materiais e virtuais sentimo-nos firmes comandantes de
navios nas ondas da web e da vida.
A gente morre quando acorda. Morre de tédio, de preguiça, morre de
mesmice, ou não, como apregoaria Caetano Veloso, com aquela voz de fruta
sumarenta e lenta degustada em algum recanto nordestino. Tem pessoas
que já morreram faz tempo. E nunca desconfiaram disso. Morrem de medo de
encarar o medo, de colocar a coragem debaixo de um braço e o medo
apoiado no outro braço e prosseguir caminhando, como ressaltaria Brecht.
Morre-se de pavor de mudar cacoetes, opiniões, certezas, repetindo
automaticamente velhos e ranhetas comportamentos. Morre-se de medo de
encarar as verdades da alma, no espelho da consciência, cujos reflexos
nem sempre soam agradáveis ou digestivos. Medo de e enfrentar a relação
puída, mas mantida apesar do visível desgaste, devido às oportunas
muletas financeiras e quiçá psicológicas. A gente morre na repetição
infindável de defeitos pra lá de conhecidos, nossos e dos outros, e
anunciados instante após instante em nossa gestualidade e fala
reveladora.
Chico Buarque já entoava em sua composição “Cotidiano”: “Todo dia ela
faz tudo sempre igual, me sacode às seis horas da manhã”. Ou ainda, o
seminal poeta clamava em “Construção” — de cuja música reproduzo um
trecho:
“Beijou sua mulher como se fosse lógico
Ergueu no patamar quatro paredes flácidas
Sentou pra descansar como se fosse um pássaro
E flutuou no ar como se fosse um príncipe
E se acabou no chão feito um pacote bêbado
“Morreu na contramão atrapalhando o sábado”.
Ergueu no patamar quatro paredes flácidas
Sentou pra descansar como se fosse um pássaro
E flutuou no ar como se fosse um príncipe
E se acabou no chão feito um pacote bêbado
“Morreu na contramão atrapalhando o sábado”.
Vivemos rodeados por mortes commoditizadas, sem rosto nem débeis desejos.
Como se salvar de tamanha e paralítica incompetência atitudinal? Tornar-se aficionado por séries televisivas centradas em zumbis ou vampiros, como “Resident Evil” e similares. Sabe-se que os zumbis namoram a eternidade. O protótipo da infinitude, ainda que se arrastem apodrecidos por terrenos estéreis.
A gente morre de frio e de mentiras. De amor escondido e expurgado
pela covardia. De afeto enrijecido e estanque. Da flor não manifesta num
discurso que se pretendia doce. Poetas, filósofos, estudiosos,
escritores circularam o fascínio deste tema. Na religião, os espíritas,
erguem a vitoriosa e redentora bandeira da reencarnação. O rabino Nilton
Bonder especula sobre a salvação na obra “A Arte de se Salvar — Sobre
Desespero e Morte”. Especialistas no assunto ocupam-se, como a dra.
Elisabeth Kübler-Ross, fundadora da Tanatologia (estudo científico da
Morte) de auxiliar doentes terminais em suas despedidas.
O cineasta Ingmar Bergman em “O Sétimo Selo”, elege a morte como
personagem central da trama. Ariano Suassuna, dramaturgo e romancista
apregoa: “Tenho duas armas para lutar contra o desespero, a tristeza e
até a morte: o riso a cavalo e o galope do sonho. É com isso que
enfrento essa dura e fascinante tarefa de viver”.
Muita gente morre de silêncio. Não joga para fora as fecundas
cirandas do coração. Morre de ódio, de inveja. E finge que estes
sentimentos, tão descivilizados e deselegantes, pertencem somente aos
outros. De soberba, arrogância e interjeições também se morre. E ainda
quem deixa a paixão morrer no sexo e faz amor sem prazer. Como quem come
uma sobremesa de nariz entupido.
Alguns poetas passeiam com naturalidade pela finitude. Pois parece
que sempre há algo de romântico em dizer adeus à existência. Mário
Quintana divaga: “Se vale a pena viver e se a morte faz parte da vida,
então, morrer também vale a pena”.
Há gente que morre de orgulho, mas não dá o braço a torcer. Criaturas
que jamais conheceram a grandeza do perdão, do abraço, da palavra sem
mascaramentos.
Impossível deixar de citar também o breve excerto de Manoel Bandeira,
no poema “A Morte Absoluta”:
“Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma
sombra.
A lembrança de uma sombra.
Em nenhum coração, em nenhum
pensamento.
Em nenhuma epiderme.
Morrer tão completamente.
Que um dia ao
lerem o teu nome num papel perguntem: Quem foi?
Morrer mais
completamente ainda.
Sem deixar sequer esse nome”.
Nosso amantíssimo Drummond, traça versos em carne viva em “Os Ombros
Suportam o Mundo” sem qualquer anestesia metafórica, declara na estrofe
final deste seu poema:
“Alguns, achando bárbaro o espetáculo.
Prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta
morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem
mistificação”.
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* Professora. Escritora.
Fonte: http://www.revistabula.com/16/06/2013
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