EUGÊNIO BUCCI *
Há coisa de dez anos, o nome do francês José Bové correu
o mundo. Líder de comícios antiglobalização, ganhou aura de celebridade
radical. Em 2002, arranjou uma boa encrenca com as autoridades de
Villeneuve-lès-Maguelone, em Montpellier, no sul da França, por depredar
uma lanchonete do McDonald's.
Bem sabemos que Bové não foi o único praticante dessa modalidade de
protesto. Desde que começaram a eclodir na Europa as jornadas contra a
globalização, na virada do século, esse negócio de quebrar instalações
do McDonald's virou um esporte globalizado (com todo o respeito). A cada
reunião do G-8, logo meia dúzia de rapazes saía correndo para jogar
pedras nas vitrines da mais notória rede de hambúrgueres do planeta. Não
que os agressores tivessem uma rusga com a funcionária do caixa ou com o
moço que pilotava a chapa na cozinha. O ato não era pessoal, mas
"político", diriam eles. Na verdade, só era político porque era antes um
ato linguístico (ou semiótico, se você preferir).
A explicação é relativamente simples. Ao lado da Coca-Cola, o
logotipo do McDonald's alcançou o status de símbolo do "american way of
life", um selo inconfundível do imperialismo. A partir daí, depredar o
signo do imperialismo (no caso, a lanchonete do McDonald's) virou
sinônimo depredar o próprio imperialismo. É verdade que, no caso
específico de Bové, investir contra a cadeia de fast food imperialista
tinha significados outros, como rechaçar os transgênicos e amaldiçoar os
alimentos importados que tiravam mercado dos agricultores e pecuaristas
franceses - mas, fora essas esquisitices, o esporte globalizado de
quebrar McDonald's foi o jeito performático que os manifestantes
encontraram de gritar, na linguagem do espetáculo, "yankee, go home!" ou
"vade retro, Tio Sam".
Agora, a mesma chave "linguística" pode nos ajudar a "ler" melhor as
manifestações de rua do Brasil. Aqui, as passeatas que já levaram
milhões de cidadãos às ruas em centenas de cidades disseminam
depredações para todo lado. Os manifestantes mais violentos incendiaram
um quiosque da Polícia Militar em frente à Prefeitura de São Paulo.
Quebraram vidraças do Palácio do Itamaraty. Estilhaçaram vidros de
ônibus. E muito mais. Que fique bem claro, logo de saída, essas condutas
são inaceitáveis por todos os motivos; elas fazem contrapropaganda do
movimento e acabam por dar razão aos que querem reprimi-lo. Os
depredadores são "vândalos", diz o repórter do telejornal, fazendo coro
com a fala da presidente da República, que chamou os baderneiros de
"arruaceiros". Isto posto, é preciso observar que há algo além de
arruaça gratuita no vandalismo desgovernado. Também aí existem signos em
enfrentamento, e esses signos podem nos mostrar um pouco mais do que
está em jogo.
O alvo das explosões de violência são instalações que representam o
poder, são os símbolos da ordem posta: as sedes do Executivo, os ônibus
urbanos, os capacetes da Tropa de Choque. Ao que o leitor se há de
perguntar: "Mas, e os automóveis das emissoras de TV, que também são
vítimas da selvageria, são do mesmo modo signos do poder?".
Bem, aos olhos dos ativistas radicalizados, talvez sim. Embora a
imensa maioria dos que vão às ruas olhe para as câmeras de TV como se
fossem aliadas, confraternizando com elas, mostrando-se para elas como
forma de mostrar-se ao País (sem contar o fato de que foi pela imprensa
que a sociedade tomou conhecimento das irregularidades que despertaram a
ira dos cidadãos), é possível que, para os fascistas adeptos da
quebradeira, as logomarcas de redes de televisão simbolizem os
interesses que dão sustentação aos governos e à ordem que as passeatas
gostariam de pôr abaixo. Para esses, as caminhonetes das emissoras
encarnam um estado de coisas que deve ser incendiado de uma vez por
todas.
Assim, ainda que não exista nenhuma justificativa ética para as
depredações a que temos assistido, existe também dentro delas uma razão
mais profunda que os analistas (e, principalmente, as autoridades) têm o
dever de levar em conta. Para começar, não idealizemos, não
mistifiquemos o caráter pacífico de um levante popular dessas
proporções. Ele é, sim, pacífico, mas não vem vacinado contra desvios de
indisciplina e de agressividade. Se até em jogos de futebol as torcidas
- quando não os próprios atletas - saem de controle e partem para a
pancadaria, não haveria por que ser diferente com as manifestações de
massa. O que chama a atenção, agora, é que os vândalos das passeatas,
diferentemente dos vândalos dos estádios, não desferem agressões a esmo,
em torcidas rivais diversificadas. Têm clareza total, ou quase total,
sobre quem é o inimigo: o governo, as autoridades, o poder. Sejam
pacíficos, sejam violentos, sejam calmos, sejam enfurecidos, os que
protestam nas ruas sabem muito bem quem querem nocautear. Podem não ter
muita unidade quanto às palavras de ordem, podem não ter líderes
estáveis, fixos, mas, quanto ao inimigo, são unânimes. Por isso, o
sentido (linguístico, semiológico) dessa revolta é eloquente: os signos
do poder estão sendo, simbólica e fisicamente, engrouvinhados,
pisoteados, estilhaçados pelos protestos.
Há vândalos nas ruas? Milhares. Os que assaltam lojas de eletrônicos
na ressaca das manifestações são vândalos meliantes. Os policiais que
atiram em gente quieta e indefesa são vândalos fardados. Os que aceleram
suas SUVs caríssimas contra manifestantes que pedem melhor transporte
público são vândalos letais. Mas os mais nefastos, os mais mortíferos
entre todos os vândalos agem longe das ruas. Usam terno e gravata.
Respiram ar-condicionado. Roubam sonhos, direitos e dinheiro dos
trabalhadores. Subornam os movimentos sociais. Depredam a autoestima da
Nação. Humilham a gente. Depois, sorriem engomados e fazem anúncios
mirabolantes, como se não fossem os responsáveis pelo derretimento dos
signos do poder.
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* EUGÊNIO BUCCI É JORNALISTA E PROFESSOR DA ECA-USP E DA ESPM.
Fonte: Estadão on line, 27/06/2013
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