MARCELO RIDENTI*
Diversidade de insatisfações com sinais ideológicos misturados, cada
qual identificando no movimento
a realização dos próprios desejos
De modo inesperado, tomaram as ruas os netos da Marcha da Família com
Deus pela Liberdade de 1964 e da Passeata dos Cem Mil de 1968. Os filhos
dos que apoiaram a eleição de Collor em 1982 e dos que se manifestaram
por seu impeachment em 1992. Todos contraditoriamente juntos.
Claro, em outro contexto. Diversidade de insatisfações com sinais
ideológicos misturados, que se expressam também nas várias
interpretações, cada qual identificando no movimento a realização dos
próprios desejos e tentando influenciá-lo.
Setores de esquerda encantaram-se com o que lhes pareceu o início de uma
revolução espontânea, mas ficaram embasbacados com as hostilidades
sofridas, não por parte da polícia, mas de alguns anticomunistas.
Adeptos do PT, percebendo que o movimento redunda em questionamentos
variados a seus governos, tendem a reduzi-lo ao caráter fascista de
certos manifestantes.
Os conservadores --inclusive na imprensa, sobretudo televisiva--
ressaltam os protestos ordeiros contra a corrupção, tentando restringir o
movimento a um aspecto pontual, como se todas as mazelas da ordem
constituída se devessem à malversação das verbas públicas pelo PT.
Por sua vez, os defensores de causas como a tarifa zero sonham que a
multidão está envolvida numa nova democracia horizontal e plebiscitária,
pacificamente movida a internet, mas também se assustaram com a
ferocidade de alguns grupos.
Em todos os pontos de vista, há algo de verdade e mistificação. O enigma
começa a ser resolvido com a pergunta: quem se lança às ruas? Ao que
tudo indica até o momento, são principalmente setores da juventude, até
há pouco tida como despolitizada, e que não deixa de expressar as
contradições da sociedade.
Parece tratar-se de uma juventude sobretudo das camadas médias,
beneficiadas por mudanças nos níveis de escolaridade, mas inseguras
diante de suas consequências e com pouca formação política.
Dados do MEC apontam que há hoje cerca de 7 milhões de universitários. O
acesso ao ensino superior praticamente dobrou em uma década. Em 2000,
eram admitidos anualmente 900 mil calouros. Em 2011, quase 1,7 milhão.
Dois terços no ensino privado.
A título de comparação, tome-se a década das manifestações estudantis.
Em 1960, havia 35.909 vagas disponíveis no ensino superior, número que
saltou para 57.342 em 1964, ano do golpe de Estado, chegando a 89.582 no
tempo das revoltas de 1968, a maioria no ensino público. Em termos
absolutos, a evolução foi enorme. Não obstante, apenas 15% dos
brasileiros com idade para estar na faculdade cursam o ensino superior.
Quanto à origem dos universitários, muitos compõem a primeira geração
familiar com acesso ao ensino superior. Outros são de famílias com
capital cultural e/ou econômico elevado, atônitos com a ampliação do
meio universitário.
No que se refere às expectativas, parece haver o temor de alguns de não
poder manter o padrão de vida da família e de outros de não ver
realizada sua esperada ascensão social.
Produziu-se uma massa de jovens escolarizados, com expectativas elevadas
e incertezas quanto ao futuro, sem encontrar pleno reconhecimento no
mercado de trabalho nem tampouco na política. Ademais, detecta-se
insatisfação com o individualismo exacerbado.
Em suma, um meio social efervescente em busca de causas na era da i(nc)lusão pelo consumo, em meio à degradação da vida urbana.
E por onde andam os 70% de jovens de 18 a 24 anos que não estão na
escola? Alguns, no mercado de trabalho precarizado. Outros compõem o
chamado "nem nem", nem escola nem trabalho. Massa ressentida que em
parte também integra as manifestações.
No ano que vem, completam-se os 50 anos do golpe de 1964, cuja bandeira
ideológica era o combate aos políticos e à corrupção. O risco está dado
novamente? Por sorte, as manifestações trazem também reivindicações por
liberdades democráticas, busca de reconhecimento e respeito, tocando num
aspecto central: a luta pelo investimento em transporte, saúde e
educação, contra a apropriação privada do fundo público.
Chegaram ao limite as possibilidades de mudança dentro das estruturas
sociais consolidadas no tempo da ditadura e que não foram tocadas após a
redemocratização? Será possível aperfeiçoar a democracia política,
também num sentido social? Abre-se um tempo de incertezas.
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* MARCELO RIDENTI, 54, é professor titular de sociologia na Universidade Estadual de Campinas e autor de "O Fantasma da Revolução Brasileira"
Fonte: Folha on line, 23/06/2013
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