JULIÁN FUKS*
Crônica de uma passeata
Preso à minha classe e a algumas roupas, vou de branco pela rua
cinzenta. Melancolias, mercadorias espreitam-me. Devo seguir até o
enjoo? Posso, sem armas, revoltar-me?
Preso à minha classe vou pela rua sem pensar nesses versos de Drummond.
Não estou só, vou bem acompanhado. Se não posso me despir das minhas
roupas, trato de me despir do pronome singular. Vamos pela rua aos
milhares, às dezenas ou centenas de milhares, não sabemos quantos somos.
Vamos a passo lento, entoando cantos esparsos, escassas palavras de
ordem, entregando-nos por vezes a um silêncio involuntário, carregado de
indizíveis vontades.
À minha frente, uma imensidade de dorsos se funde numa massa amorfa cujo
início me foge aos olhos. Às minhas costas, cartazes e faixas
atravessam a paisagem e não se adivinha onde a turba pode acabar. Noto
que o silêncio me devolveu a mim, me distanciou da coletividade. Só
quando um grupo grita que tomamos as principais avenidas de São Paulo,
que ocupamos o centro do Rio, só quando ouço esses alardes eufóricos me
dou conta de que formamos um único e enorme corpo, um corpo que parou o
país.
De onde viemos tantos não é fácil determinar. Para onde vamos não está
claro. Somos uma multidão convocada pelo poder inestimado das redes
sociais, e que se alastra pelas ruas em uma múltipla e longuíssima
caminhada. Não há unidade entre nós, sabemos que jamais haverá unidade
entre centenas de milhares, mas uma bandeira tremula em todas as
passeatas, há um objetivo concreto: a redução do preço dos transportes,
depois de uma sequência de aumentos que tem imobilizado as classes mais
pobres. Não a imobiliza por completo, é óbvio: chega a roubar-lhe até um
terço do salário para que todos os dias vá e volte do trabalho.
O que pedimos é pouca coisa, é verdade, mas que tristes são as coisas
consideradas sem ênfase. Pedimos pouco, mas nem por isso deixamos de
vislumbrar uma concretíssima dimensão utópica. Reivindicamos um
transporte público e gratuito de qualidade, criticamos a lógica
privatista aplicada a tantos serviços supostamente públicos. Rechaçamos,
como ouço uma garota explicar, o conluio que se criou entre prefeituras
e governos e umas poucas empresas privadas, os governantes rendidos a
interesses da minoria abastada e abandonando seu povo --a jovem se
exalta. Mercadorias nos espreitam, mas não somos meros consumidores
inconformados com produtos e serviços de baixa qualidade: não
abandonamos a ideologia, não acreditamos no fim da história.
A MASSA NO ESPELHO Durante um dos nossos longos silêncios, alguém
ressalta que nos vemos refletidos na fachada de um grande prédio
espelhado. Por um instante nos espantamos com nosso próprio tamanho,
encantados por aquela imagem: a avenida sempre abarrotada com a frieza
das caixas metálicas, dos carros inexpressivos que só devolvem ao prédio
sua própria imagem, agora está ocupada por mulheres e homens.
Reconquistamos a cidade que nos fora usurpada pelas máquinas, e
percebemos: não paramos a cidade, esta cidade de trânsito estacionário.
Ela nunca esteve tão móvel, tão viva quanto agora.
Mulheres e homens se mobilizam diante de sua própria imagem: animam-se,
põem-se a cantar, protestam aos risos com energia renovada. Exaltam-se
ante sua própria exaltação, se entusiasmam com seu entusiasmo, se
apaixonam por si mesmos como?i?ek desaconselhara. É só por um momento,
alguns poderiam prometer. É só enquanto o povo das cidades desperta de
um sono prolongado, unindo-se a movimentos sociais que nunca
adormeceram, um povo que há pouco foi anestesiado pela ditadura militar
--perseguido, exilado, preso e morto sem alcançar justiça posterior.
Crimes do tempo, como perdoá-los? Se agora recuperamos o hábito massivo
de protestar, perdoe se nos entregamos a essa nova estetização da
política, estetização narcisista que tão bem nos caracteriza, e nos
apaixonamos por nosso novo ímpeto de mudança, por mais difuso e
incompreensível que ele pareça.
BRECHT Não que tenhamos nos livrado de todas as mazelas desse
período, de todos os seus ferozes agentes, e é também por isso que
insistimos em carregar nossa voz e nossa mudez, em gritar e calar ante
os muros que estão surdos. Lembro-me do cartaz que li nas primeiras
manifestações, os versos de Brecht: "Do rio que tudo arrasta, diz-se que
é violento. Mas ninguém chama violentas as margens que o comprimem".
Diziam governantes, jornais, TVs, diziam em uníssono e sua voz ressoa
entre nós, diziam que éramos vândalos, baderneiros, que precisávamos ser
banidos das ruas de vez.
Clamava-se por nossa supressão, para que as margens feitas de escudos e
cassetetes comprimissem o rio feito de gente, e as margens o comprimiram
com tanta ênfase que por um momento não se soube se haveria mais água,
se haveria mais rio. Ouço um rapaz, talvez eu, abandonar a metáfora para
que ninguém o entenda mal: o instrumento utilizado para nos suprimir,
moldado com precisão para a repressão, expressão do autoritarismo
arraigado na cultura do país, é a Polícia Militar. Um órgão que, entre
outros males, promove dia a dia nas periferias uma chacina de jovens
negros e pobres, ração diária de erro distribuída nas favelas.
Não surpreende então que tantos jovens --negros e brancos, ricos e
pobres-- tenham voltado a inundar as ruas com seu rio de inquietação,
rio a um só tempo revolto e plácido, em apelo pela erosão de suas
rígidas margens de ferro.
OUTROS GRITOS Preso à minha classe, à minha ideologia, à minha
cor, vou pela rua cinzenta e me extravio entre os milhares, leio suas
faixas e ouço seus brados para saber quem me torno, quem sou. Não perco
consciência da minha identidade, das minhas convicções, mas me misturo à
massa e quero ser mais de um.
Aprecio alguns que empunham cartazes inesperados, que preferem gastar
sua tinta contra a Fifa, essa entidade que quer se engastar por aqui e
impor um regime de exceção: feito de monopólios, despejos forçados,
especulação. Consigo ser então um jovem que mais critica do que se
empolga com futebol, embora saiba que assistirei ao próximo jogo da
seleção.
Afasto-me desse núcleo e mais mudanças se produzem em mim: sou agora um
jornalista atacando a imprensa tradicional, sou um anarquista, sou um
metroviário reclamando o reajuste salarial, gritando a plenos pulmões
contra o governador.
Distraído, me aproximo de facções que não obtêm minha apreciação:
estranhos jovens em efusão patriótica envoltos em bandeiras do Brasil,
cantando o hino como jamais se canta, com entusiasmo febril. Seus gritos
são velhos libelos contra toda a política, ou contra o PT e a nova
classe dominante, a pauta já desgastada da corrupção somada a pedidos
vagos por saúde, educação. Quando cruzam com grupos empunhando bandeiras
de uma mesma cor, entoam seus gritos de rejeição, sem partido, sem
partido, tentando abafar qualquer dissenso. A eles não me uno, acometido
pelo sutil temor de uma cooptação, de uma espoliação reacionária do
movimento popular. Devo seguir até o enjoo?, me pergunto sentindo pela
primeira vez um desalento, o cansaço nas pernas.
UMA FLOR FEIA Devemos seguir até o enjoo, o tempo não chegou de
completa justiça, é o que a massa responde em seu empenho perturbador. O
que há por enquanto é uma ânsia, não uma náusea que nos exija parar.
Uma ânsia que não tem nome, não tem rosto, mas se manifesta por esse
corpo imenso que constituímos sem saber. Uma ânsia por ação, por
participação efetiva, por conhecimento e voz sobre cada decisão, sobre
os rumos que tomaremos a partir daqui. Ninguém diz, todos dizem: uma
ânsia por uma democracia mais abrangente, mais real, talvez abrangente e
real como nunca se viu. Desconfiamos das representações: o "não me
representa" tornou-se o estranho novo lema do país. O caso é que
vencemos uma vez. Haverá quem acuse de ser pouco, e talvez seja. Mas não
será pouco o vigor que essa pequena vitória dará ao nosso corpo, imóvel
há tanto tempo.
Caminhando pela ampla avenida, baixo os olhos e contemplo meus pés,
vendo o asfalto impecável que fica para trás. Paro sem saber ao certo,
mas sentindo que uma flor rompeu esse asfalto. Agora sim penso em
Drummond. Uma flor nasceu na rua! Sua cor não se percebe. Suas pétalas
não se abrem. Seu nome não está nos livros. É feia. Mas é realmente uma
flor.
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*É escritor e crítico literário brasileiro, filho de pais argentinos. Em 2012, foi eleito pela revista Granta um dos vinte melhores jovens escritores brasileiros.
Fonte: Folha on line, 23/06/2013
Imagem da Internet
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