domingo, 23 de junho de 2013

Uma flor nasceu na rua

JULIÁN FUKS*
 
Crônica de uma passeata
Preso à minha classe e a algumas roupas, vou de branco pela rua cinzenta. Melancolias, mercadorias espreitam-me. Devo seguir até o enjoo? Posso, sem armas, revoltar-me? 

Preso à minha classe vou pela rua sem pensar nesses versos de Drummond. Não estou só, vou bem acompanhado. Se não posso me despir das minhas roupas, trato de me despir do pronome singular. Vamos pela rua aos milhares, às dezenas ou centenas de milhares, não sabemos quantos somos. Vamos a passo lento, entoando cantos esparsos, escassas palavras de ordem, entregando-nos por vezes a um silêncio involuntário, carregado de indizíveis vontades. 

À minha frente, uma imensidade de dorsos se funde numa massa amorfa cujo início me foge aos olhos. Às minhas costas, cartazes e faixas atravessam a paisagem e não se adivinha onde a turba pode acabar. Noto que o silêncio me devolveu a mim, me distanciou da coletividade. Só quando um grupo grita que tomamos as principais avenidas de São Paulo, que ocupamos o centro do Rio, só quando ouço esses alardes eufóricos me dou conta de que formamos um único e enorme corpo, um corpo que parou o país. 

De onde viemos tantos não é fácil determinar. Para onde vamos não está claro. Somos uma multidão convocada pelo poder inestimado das redes sociais, e que se alastra pelas ruas em uma múltipla e longuíssima caminhada. Não há unidade entre nós, sabemos que jamais haverá unidade entre centenas de milhares, mas uma bandeira tremula em todas as passeatas, há um objetivo concreto: a redução do preço dos transportes, depois de uma sequência de aumentos que tem imobilizado as classes mais pobres. Não a imobiliza por completo, é óbvio: chega a roubar-lhe até um terço do salário para que todos os dias vá e volte do trabalho. 

O que pedimos é pouca coisa, é verdade, mas que tristes são as coisas consideradas sem ênfase. Pedimos pouco, mas nem por isso deixamos de vislumbrar uma concretíssima dimensão utópica. Reivindicamos um transporte público e gratuito de qualidade, criticamos a lógica privatista aplicada a tantos serviços supostamente públicos. Rechaçamos, como ouço uma garota explicar, o conluio que se criou entre prefeituras e governos e umas poucas empresas privadas, os governantes rendidos a interesses da minoria abastada e abandonando seu povo --a jovem se exalta. Mercadorias nos espreitam, mas não somos meros consumidores inconformados com produtos e serviços de baixa qualidade: não abandonamos a ideologia, não acreditamos no fim da história. 

A MASSA NO ESPELHO Durante um dos nossos longos silêncios, alguém ressalta que nos vemos refletidos na fachada de um grande prédio espelhado. Por um instante nos espantamos com nosso próprio tamanho, encantados por aquela imagem: a avenida sempre abarrotada com a frieza das caixas metálicas, dos carros inexpressivos que só devolvem ao prédio sua própria imagem, agora está ocupada por mulheres e homens. Reconquistamos a cidade que nos fora usurpada pelas máquinas, e percebemos: não paramos a cidade, esta cidade de trânsito estacionário. Ela nunca esteve tão móvel, tão viva quanto agora. 

Mulheres e homens se mobilizam diante de sua própria imagem: animam-se, põem-se a cantar, protestam aos risos com energia renovada. Exaltam-se ante sua própria exaltação, se entusiasmam com seu entusiasmo, se apaixonam por si mesmos como?i?ek desaconselhara. É só por um momento, alguns poderiam prometer. É só enquanto o povo das cidades desperta de um sono prolongado, unindo-se a movimentos sociais que nunca adormeceram, um povo que há pouco foi anestesiado pela ditadura militar --perseguido, exilado, preso e morto sem alcançar justiça posterior. Crimes do tempo, como perdoá-los? Se agora recuperamos o hábito massivo de protestar, perdoe se nos entregamos a essa nova estetização da política, estetização narcisista que tão bem nos caracteriza, e nos apaixonamos por nosso novo ímpeto de mudança, por mais difuso e incompreensível que ele pareça. 

BRECHT Não que tenhamos nos livrado de todas as mazelas desse período, de todos os seus ferozes agentes, e é também por isso que insistimos em carregar nossa voz e nossa mudez, em gritar e calar ante os muros que estão surdos. Lembro-me do cartaz que li nas primeiras manifestações, os versos de Brecht: "Do rio que tudo arrasta, diz-se que é violento. Mas ninguém chama violentas as margens que o comprimem". Diziam governantes, jornais, TVs, diziam em uníssono e sua voz ressoa entre nós, diziam que éramos vândalos, baderneiros, que precisávamos ser banidos das ruas de vez. 

Clamava-se por nossa supressão, para que as margens feitas de escudos e cassetetes comprimissem o rio feito de gente, e as margens o comprimiram com tanta ênfase que por um momento não se soube se haveria mais água, se haveria mais rio. Ouço um rapaz, talvez eu, abandonar a metáfora para que ninguém o entenda mal: o instrumento utilizado para nos suprimir, moldado com precisão para a repressão, expressão do autoritarismo arraigado na cultura do país, é a Polícia Militar. Um órgão que, entre outros males, promove dia a dia nas periferias uma chacina de jovens negros e pobres, ração diária de erro distribuída nas favelas. 

Não surpreende então que tantos jovens --negros e brancos, ricos e pobres-- tenham voltado a inundar as ruas com seu rio de inquietação, rio a um só tempo revolto e plácido, em apelo pela erosão de suas rígidas margens de ferro. 

OUTROS GRITOS Preso à minha classe, à minha ideologia, à minha cor, vou pela rua cinzenta e me extravio entre os milhares, leio suas faixas e ouço seus brados para saber quem me torno, quem sou. Não perco consciência da minha identidade, das minhas convicções, mas me misturo à massa e quero ser mais de um. 

Aprecio alguns que empunham cartazes inesperados, que preferem gastar sua tinta contra a Fifa, essa entidade que quer se engastar por aqui e impor um regime de exceção: feito de monopólios, despejos forçados, especulação. Consigo ser então um jovem que mais critica do que se empolga com futebol, embora saiba que assistirei ao próximo jogo da seleção. 

Afasto-me desse núcleo e mais mudanças se produzem em mim: sou agora um jornalista atacando a imprensa tradicional, sou um anarquista, sou um metroviário reclamando o reajuste salarial, gritando a plenos pulmões contra o governador. 

Distraído, me aproximo de facções que não obtêm minha apreciação: estranhos jovens em efusão patriótica envoltos em bandeiras do Brasil, cantando o hino como jamais se canta, com entusiasmo febril. Seus gritos são velhos libelos contra toda a política, ou contra o PT e a nova classe dominante, a pauta já desgastada da corrupção somada a pedidos vagos por saúde, educação. Quando cruzam com grupos empunhando bandeiras de uma mesma cor, entoam seus gritos de rejeição, sem partido, sem partido, tentando abafar qualquer dissenso. A eles não me uno, acometido pelo sutil temor de uma cooptação, de uma espoliação reacionária do movimento popular. Devo seguir até o enjoo?, me pergunto sentindo pela primeira vez um desalento, o cansaço nas pernas. 

UMA FLOR FEIA Devemos seguir até o enjoo, o tempo não chegou de completa justiça, é o que a massa responde em seu empenho perturbador. O que há por enquanto é uma ânsia, não uma náusea que nos exija parar. Uma ânsia que não tem nome, não tem rosto, mas se manifesta por esse corpo imenso que constituímos sem saber. Uma ânsia por ação, por participação efetiva, por conhecimento e voz sobre cada decisão, sobre os rumos que tomaremos a partir daqui. Ninguém diz, todos dizem: uma ânsia por uma democracia mais abrangente, mais real, talvez abrangente e real como nunca se viu. Desconfiamos das representações: o "não me representa" tornou-se o estranho novo lema do país. O caso é que vencemos uma vez. Haverá quem acuse de ser pouco, e talvez seja. Mas não será pouco o vigor que essa pequena vitória dará ao nosso corpo, imóvel há tanto tempo. 

Caminhando pela ampla avenida, baixo os olhos e contemplo meus pés, vendo o asfalto impecável que fica para trás. Paro sem saber ao certo, mas sentindo que uma flor rompeu esse asfalto. Agora sim penso em Drummond. Uma flor nasceu na rua! Sua cor não se percebe. Suas pétalas não se abrem. Seu nome não está nos livros. É feia. Mas é realmente uma flor. 
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  *É escritor e crítico literário brasileiro, filho de pais argentinos. Em 2012, foi eleito pela revista Granta um dos vinte melhores jovens escritores brasileiros. 
Fonte: Folha on line, 23/06/2013
Imagem da Internet

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