Entrevista com Ignacio Ramonet
Antes de estar na Argentina, o diretor de Le Monde Diplomatique falou com o jornal Página/12, em Washington, durante um congresso de latino-americanistas, com forte presença do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso).
Resgatou as políticas sociais do Brasil, Argentina e Venezuela, “os
governos neoprogressistas que retiraram 60 milhões da pobreza”.
Não é que esteja em viagem permanente, mas Ignacio Ramonet (foto) esteve em Washington antes de chegar a Buenos Aires, nesta mesma semana, para o segundo Encontro de Televisões Públicas da América Latina.
Seu discurso, na sexta-feira (10/06) à noite, foi um dos pontos altos
do congresso, pela sua forte defesa e análise da televisão não
comercial, social e pública. Também visitou a Casa Rosada, onde se encontrou com o chefe de Gabinete, Juan Manuel Abal Medina; o secretário de Comunicação Pública, Alfredo Scoccimarro, e o presidente de Rádio e Televisão Pública, Tristán Bauer. No dia da conversa com o jornal Página/12, em Washington, chegou com um boné azul no maior estande do local onde ocorreu o congresso da Latin American Studies Association, a LASA: o do Clacso. Curioso, Ignacio Ramonet olhou todos os livros. Parece sempre acompanhar todos os assuntos.
Eis a entrevista.
Um enciclopedista?
Agora não é possível ser enciclopedista, mas quando Diderot e D’Alembert colocaram em curso a Enciclopédia, quiseram resgatar o saber racional. Revisar o saber humano em nome da razão. Nesse sentido, apareceram fenômenos, desde a Revolução Francesa
até o sistema métrico decimal. Hoje, estamos numa revolução da mesma
envergadura, mas não se pode reduzir a um só parâmetro. Obviamente, além
disso, não acredito que uma equipe, por mais importante que seja,
pudesse fazer uma enciclopédia onde estivesse tudo. Wikipédia é a enciclopédia de hoje, mas nós todos a fazemos juntos. Se a enciclopédia é a humanidade quem faz, já é outra coisa.
Uma reunião de dois mil acadêmicos pode se parecer com uma
enciclopédia. Ou pode se ficar escassa de verbetes. O que faltou na
LASA?
Obviamente, não acompanhei tudo, mas falta um olhar sobre as ciências
sociais na Ásia. E é evidente que o continente que está emergindo, e
com o qual é preciso estabelecer pontes, como em seu momento
estabeleceu-se com a Europa, a partir da América Latina, é o continente
que inclui a China,
Índia, Vietnã, Indonésia, etc. Daqui até 2030 ou 2050, as potências
emergentes estarão dominando juntas e não sabemos o que é a sociedade
asiática. A partir da América Latina, relações comerciais e muitas
relações bilaterais estão se multiplicando.
O Brasil exporta minério de ferro e soja. A Argentina, soja, e disso obtém divisas por direitos de exportação.
Claro, e não sabemos para que tipo de sociedade estão transferindo
esses bens. Conhecemos o tipo de poder, mas não a sociedade. Na
educação, por exemplo, quando terminou a guerra da Coreia, a atual
Coreia do Sul estava no mesmo nível de Gana, na África. Então, o que
podemos aprender dos coreanos? Como puderam impregnar sua sociedade de
tecnologia de ponta? Que parâmetros civilizacionais essa sociedade
possui, que puderam se adaptar?
E no caso da América Latina? Observei muita importância em assuntos como migrações e gênero e, talvez, pouco para economia.
Concordo. E pouca para ecologia. Falou-se de extrativismo, sim, mas
pouco de energia. Ultimamente, a América Latina viveu crises ou
conflitos políticos no Chile, Colômbia,
na República Dominicana, no México e, mais além, em Quebec. Em escala
internacional, dizemos que é uma crise da política ou da democracia. Na
América Latina, estudou-se a pós-política ou a pós-democracia?
O que são exatamente?
Uma parte da sociedade pensa que a política ou a democracia não podem
resolver tudo. O tipo de construção política que a democracia permite, e
não se trata de criticá-la, mas de observar a democracia representativa
da forma como está funcionando, possibilita que existam elites que
possuem muitos privilégios, que pilotam a sociedade e não encontram as
respostas que a sociedade exige. Ao mesmo tempo, recebem críticas por
corrupção e abuso de poder, o que gera muita insatisfação. O que na
Argentina foi muito conhecido por meio daquele “Que se vayan todos”
e, hoje, também se percebe na Europa. Existem crises da política e da
democracia e, ao mesmo tempo, vemos que a América Latina é o continente
que mais respostas procurou dar para esta questão. Na América Latina se
inventou o conceito de democracia participativa. Nas sociedades
progressistas foi discutido sobre como fazer com que os processos
sociais sejam acompanhados de protagonismo social. É o que se tenta
fazer com a revolução cidadã do Equador, com o socialismo do século XXI na Venezuela ou com a revolução do bem viver na Bolívia.
Os Estados, da forma como foram concebidos no século XIX, estão esgotados ou simplesmente em tensão?
Como pensar para além desta democracia? A democracia é o fim da
história? Talvez, não. Talvez a democracia não esteja em crise, mas o
funcionamento da democracia. O fato de que estamos todos cada vez mais
conectados e de que temos a possibilidade de dar nossa opinião, como é
integrado na democracia? Não resolverá o problema, claro, mas como dará
satisfação, ao menos, para parte dos problemas? Para os cidadãos que
querem participar do debate político e veem que o jogo democrático não
permite, porque apenas lhe dão chance de votar a cada quatro ou cinco
anos? A figura do referendo revogatório é uma maneira de buscar romper
com o cheque em branco entregue a um presidente ou presidenta eleita.
Entretanto, existem sistemas consultivos, como fóruns regulares e
organizados, em que os cidadãos intervêm. É uma maneira de usar as novas
tecnologias para avançar. Já percebemos uma dificuldade: o risco da
demagogia. Governar sem fazer sofrer e unicamente indo no sentido da
demanda generalizada. Tendo em conta, além disso, que a sociedade é
complexa, mas que a educação e a informação são tomadas de maneira
superficial. Na Europa, por exemplo, escutamos que governos de
especialistas fazem falta.
Mario Monti na Itália.
Claro. Contudo, nas eleições obteve 7%. Disse que foi porque pediu
sacrifícios. Estamos numa situação bem complexa, em que é preciso saber
mesclar especialistas com a satisfação do desejo profundo de democracia.
No Fórum de Porto Alegre, você me falou de uma série de
governos neoprogressistas. Qual é o desafio destes governos? Por
exemplo, existe uma crise institucional na Venezuela?
Não. Ali, há uma Constituição sólida e as instituições estão
funcionando. A oposição alcançou um resultado indiscutivelmente
importante e possui a ideia de que isso dá para ela o direito de não
jogar o jogo democrático. Contudo, ao mesmo tempo, não teria sido
possível governar sem a maioria na Assembleia Nacional e
no conjunto dos Estados. É preocupante que, apesar disso, a oposição
jogue para desestabilizar. É preocupante que os Estados Unidos ainda não
tenham reconhecido o governo de Nicolás Maduro. É preocupante a violência.
A oposição chegou a contar com um candidato competitivo como
Henrique Capriles. O paradoxo é que quando alcançou esse nível tão alto,
quando cresceu e se unificou, a oposição aprofunda a tensão.
Perdeu sua tranquilidade. Fez uma boa campanha na disputa com Hugo Chávez e uma muito boa na disputa com Maduro. Contra Chávez
reconheceu a derrota e até prometeu que manteria os médicos cubanos que
ajudaram nos planos sociais. O povo venezuelano, que em 14 anos teve
uma educação política importante, não entende a razão da oposição se
colocar numa guerra civil política e seus parlamentares se negam a
reconhecer o caráter institucional e legítimo da presidência. A situação
se complicou porque a oposição foi uma perdedora ruim. No entanto, as
instituições resistem. Não se movem, não é?
Os desafios são a inflação, a industrialização e a insegurança?
Em minha opinião, Nicolás Maduro é o dirigente mais
sério que a Venezuela possui. O mais preparado. Tem capacidade para
tomar as decisões que o país necessita. Durante sua campanha, abriu
novos temas. Um era tabu para o campo da situação, como a questão da
segurança. E Maduro foi franco. Decidiu dizer que era
um problema importante, que o país não podia continuar vivendo assim e
ofereceu soluções. Em relação à inflação, em plena campanha eleitoral
desvalorizou o bolívar. Foi corajoso. Fez isto com realismo econômico e
político. Além disso, atacou os problemas de abastecimento, após
reconhecer que era um problema em seus termos conjunturais e
estruturais. Por outra parte, toda semana toma providências, estuda os
casos com o governo. O que ele chama “governo da rua”. Dentro da
revolução bolivariana, já existe um estilo diferente. Não deixa de
prestar atenção nos problemas como a saúde, a moradia, a educação e o
emprego, e acrescenta novos temas. Maduro tem um grande sangue frio e
está dirigindo a Venezuela com muita lucidez.
Os Estados Unidos parecem estar exaltando a Aliança do Pacífico como, supostamente, uma nova frente à América do Sul, de Brasil, Argentina e Venezuela, que seria o velho.
Procuram apresentar uma ideia de mudança de ciclo. Houve um ciclo
neoprogressista com a chegada destes governos e a constituição da ALBA, da Celac, do Mercosul, da Unasul.
A ideia é uma nova aliança, do México ao Chile, construindo uma
alternativa de tipo liberal. México, Colômbia, Peru e Chile assinaram
tratados de livre-comércio com os Estados Unidos, e o México está
integrado ao mercado da América do Norte, junto com os Estados Unidos e
Canadá. O Uruguai quer ser observador.
Por um lado, é preciso estar conscientes de que se trata de uma
operação com objetivo político – fazer contrapeso à aliança
neoprogressista – mas, por outro, também, na medida em que o Brasil está
no Brics, com a China e a Índia, a aliança é superior em relação à Aliança do Pacífico.
A Argentina tem como sócios comerciais a China e o próprio Brasil. De
maneira que não está isolada do Pacífico. Para além do efeito vitrine,
na realidade, a dinâmica importante continua nas mãos do Brasil ou da
Argentina, que sempre constituíram economias dinâmicas. Segundo a CIA
e vários institutos estadunidenses, haverá uma série de países com a
China e os ex-impérios como Japão, Reino Unido e França. Também a Índia.
Abaixo, os Brics ou alguns. Inferiormente, há um
pequeno grupo de países com demografia e crescimento importantes:
Vietnã, Nigéria, Indonésia, Etiópia. Na América Latina, situa-se a
Colômbia, por sua demografia, seu crescimento e pelos seus acordos com
os Estados Unidos. A Colômbia, então, aparece como uma opção para o
relatório da CIA. Mais ainda do que a Venezuela, com o seu potencial petroleiro.
O paradoxo é que a Colômbia melhora as relações e o comércio
com a Venezuela. E em Cuba acaba de dar o primeiro passo importante nas
negociações com as FARC.
Absolutamente. E a Colômbia pode ser o poder intermediário, caso o
conflito amenize. Não é menos importante que o conflito comece a se
reduzir justamente na questão agrária, com seus milhões de despojados.
O que o Brasil, a Argentina e a Venezuela poderiam fazer?
Já fizeram algo extremamente importante: tiraram 60 milhões da
pobreza. Só o Brasil tirou 40 milhões. As políticas sociais dos governos
de Kirchner e Cristina também, e o
mesmo ocorreu na Venezuela. É fundamental porque, em certa medida, as
classes médias tinham caído ou quase sumidas. O conflito havia
aumentado. Então, nos últimos anos, sair da pobreza significou se
integrar ou se aproximar da classe média e aceder a um tipo de vida mais
positiva. Também aceder a estudos, formação, melhorar a qualidade de
vida, intervir mais na política... É uma mudança extremamente
importante. O objetivo principal da política não é a de que quatro
grandes empresas se desenvolvam, mas que a sociedade passe a ser, em
certa medida, dona de seu próprio destino. As experiências
neoprogressistas não podem se sobrepor, e cada via é diferente, seja a
de Néstor, Cristina ou a do presidente Rafael Correa,
que obteve, nas eleições de fevereiro, 30 pontos a mais do que o
segundo colocado. O balanço geral, no momento, está do lado destas
experiências. O resto da América Latina não pode ignorá-las. No Peru, o
presidente Ollanta Humala acaba de acordar a importação de médicos ou professores. Ou seja: não colocamos barreiras onde não existem. Correa, em seu último mandato, construiu mais de oito mil quilômetros de estradas, além de pontes.
Você se acostumou a falar de latifúndios midiáticos, sobretudo, na América Latina.
O mais importante é que o setor público está se desenvolvendo. Sou
muito favorável a isto, pois considero que em toda a América Latina o
setor privado teve um domínio excessivo, que criou costumes muito ruins.
Por exemplo, uma programação excessivamente superficial, sem levar em
contra a exigência intelectual e a iniciação à cultura. Você não pode
elevar o nível intelectual e o sistema midiático continuar produzindo
produtos culturais que não procura resistir, mas, evidentemente, são
apenas de uma categoria: distração fácil. Uma sociedade que se educa e
se refina, precisa de outras coisas.
Você pode imaginar a resposta clássica que o proprietário de
uma cadeia de televisão daria: “Meu querido Ramonet, é o que nós
queremos”.
É a resposta de sempre, claro. Porém, é uma resposta pela audiência.
Todos nós assistimos programas nos quais ficamos envergonhados de ver. A
audiência sabe o que cada um pensa? Talvez, um país com um só canal
teria uma audiência imensa, passasse o que passasse, pela falta de
diversidade.
Brasil, com a Rede Globo.
Por exemplo. Os latifúndios são monopólios. Deve haver meios privados
e televisão privada, mas não apenas isso. O cidadão deve poder
escolher, e faz parte da democracia democratizar a cultura e os meios de
comunicação. A televisão não pode ser abandonada em apenas um setor.
Quem quer tirar proveito econômico, não forçosamente quer fazer o mal.
Entretanto, sua responsabilidade não é educar para a cidadania, mas,
justamente, obter maior benefício econômico. Os profissionais da
televisão, da imprensa e da cultura devem estar na direção. Caso
contrário, as personalidades mais interessantes se encaminhariam num
sistema dominado pelo setor privado.
Ignacio, você nasceu na Espanha e é francês. Em visita a
Buenos Aires, Lula disse que as coisas que Alemanha não tinha conseguido
na guerra, estava conseguindo na paz. Uma frase forte, não?
Um semanário alemão, Der Spiegel, publicou uma página com este título: “Na semana passada, a Alemanha venceu a Segunda Guerra Mundial”. A crise deu para Alemanha um protagonismo na União Europeia
que, desde 1941, não possuía na Europa. Isto criou um grande
desequilíbrio. Na semana passada, o primeiro-ministro chinês visitou a
Europa. O único país visitado foi a Alemanha. A única autoridade que
visitou foi Angela Merkel. O que faz cada presidente ou chefe de governo, desde François Hollande a Mariano Rajoy quando são eleitos? Visitam, no mesmo dia da posse, a senhora Merkel. Simbolicamente e na realidade, o poder está concentrado em Berlim, justamente quando a União Europeia foi construída para evitar a hegemonia e a dominação de um país sobre os demais, e também para discutir as políticas. Hoje, a austeridade, preconizada pela Alemanha, está custando muito.
Em si mesmo, um debate é se é justo que a Espanha tenha
ultrapassado os 27% de desemprego. Porém, além de analisar a questão da
justiça, parece que o modelo de austeridade não funciona para sair da
crise.
Claro, nem sequer em alguns países com certos indicadores bons. A Espanha tinha uma dívida equivalente a 30% do Produto Interno Bruto.
A norma internacional, para disparar o alarme, é de 90%. A Espanha
tinha um superávit, agora, com a austeridade, tem um déficit. Há menos
rendimentos, incluindo a redução por menor consumo, que antes alimentava
o IVA. E já não falamos apenas de países como Portugal
ou Grécia, Espanha ou Itália, mas da França ou dos Países Baixos. A
Suécia, que está na Europa, mas não na zona do euro, quer que o
continente deixe a austeridade, pois comercializa com o resto. Veja o
que, ultimamente, ocorreu na Suécia. Um motim no paraíso.
A imaginação novelesca de Henning Mankell acabou descobrindo, antecipadamente, fenômenos profundos.
As periferias onde estavam os imigrantes. A falta de política de
ajuda aos imigrantes em nome do liberalismo. E centenas de jovens
desamparados na Europa, sem diplomas, nem trabalho. As políticas
neoliberais não veem ou não querem ver o que pode acontecer amanhã. É
óbvio que com 60% de jovens espanhóis desempregados, em algum momento,
haverá problemas.
Nenhuma reativação, nem milagrosa, poderiam absorvê-los.
Não. Existe uma geração perdida. O 1% de aumento não permite reduzir o
desemprego. E para compensar o crescimento vegetativo e crescer, a
Europa deve contar com no mínimo 2,5%, com a China em 8%. Com uma
consequência política perigosa, que é o crescimento da extrema direita.
Em países nórdicos e em países baixos, os partidos de extrema direita,
embora não governem, influenciam, pois o restante negocia com eles,
certos assuntos, em troca da governabilidade. Existe a ideia, cada vez
mais difundida, de que tudo foi provado: a direita, a centro-direita, a
centro-esquerda, a esquerda. Então, por que não experimentar a extrema
direita? É um jogo perigosíssimo. A Frente Nacional da França
não tem aliados, mas já representa 23 ou 25%. E, nas próximas eleições,
a extrema direita francesa chegará a postos de direção em nível
municipal.
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A entrevista é de Martín Granovsky, publicada no jornal Página/12, 10-06-2013. A tradução é do Cepat.
Fonte: IHU on line, 14/06/2013
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