Chegou o dia em que íamos falar especificamente das
questões religiosas, de aspectos da doutrina católica e do modo como a
Igreja prossegue a sua tarefa no mundo de hoje. Mas, por onde começar? O
tema é demasiado vasto. É claro que não tínhamos a pretensão de o
esgotar, nem pouco mais ou menos. Só auscultar o seu pensamento
nalgumas questões fulcrais, candentes na sociedade.
Uma das primeiras coisas que surgem nas mesas de
família e nas conversas de café é o afastamento das pessoas da religião
e, em particular, da Igreja católica, em muitos casos atraídas pelas
propostas das comunidades evangélicas. É conhecido o fenômeno de uma
espécie de «privatização» da fé, uma vivência religiosa sem mediações
eclesiásticas – «creio em Deus, mas não nos padres», seria a tradução
popular –, que pega em certos postulados e descarta outros, e presta
pouca atenção às práticas do culto e aos compromissos lascais.
As generalizações são, necessariamente, defeituosas. A
realidade da Igreja católica na Europa, onde está em sérios problemas,
não é a mesma que nalgumas regiões de África ou da Ásia, em que vive
uma significativa expansão. Ou a diversificada situação do catolicismo
nos Estados Unidos. Mas talvez a América Latina seja uma boa síntese –
embora também com matizes – de um conjunto de desafios, sobre a base de
um substrato católico desgastado, mas inegável. (...)
Cardeal, a Igreja está a fazer bem o seu trabalho?
Vou falar da Igreja na Argentina, que é a que melhor conheço. As Linhas Pastorais para a Nova Evangelização,
que nós, os bispos, difundimos em 1990, começavam a chamar a atenção
para a importância de um «acolhimento cordial». A tentação em que nós,
os clérigos, podemos cair é a de ser administradores e não pastores.
Isto leva a que, quando uma pessoa vai à paróquia para pedir um
sacramento ou por qualquer outro motivo, já não seja atendida pelo
sacerdote, mas sim pela secretária paroquial que, em certas
oportunidades, pode resultar numa situação desagradável. Numa diocese
havia uma secretária a que os paroquianos chamavam a tarântula.
O problema é que este tipo de pessoas não só afugenta
as outras do padre, da paróquia, como da Igreja e de Jesus. Não devemos
esquecer que, para muita gente, a paróquia próxima da sua casa é a
«porta de acesso» à religião católica. É tão importante quanto isso.
Ao contrário da maioria das comunidades
evangélicas, onde há cordialidade, proximidade e as pessoas são
chamadas pelo seu nome… Mas também onde não esperam que as pessoas
compareçam, mas vão procurá-las.
É fundamental que nós, católicos – tanto os clérigos
como os leigos –, vamos ao encontro das pessoas. Uma vez dizia-me um
sacerdote muito sábio que nos encontramos perante uma situação
completamente oposta àquela que é evocada na parábola do pastor, que
tinha noventa e nove ovelhas no curral e foi buscar a que se perdeu:
temos uma no curral e noventa e nove que nós não vamos buscar. Creio
sinceramente que a opção básica da Igreja, atualmente, não é diminuir
ou tirar preceitos, ou tornar isto ou aquilo mais fácil, mas sim sair
para a rua à procura das pessoas, conhecê-las pelo seu nome. Mas não só
por que essa é a sua missão, sair para anunciar o Evangelho, como
também porque não o fazer se torna nocivo.
Como assim?
Uma Igreja que se limita a administrar o trabalho
paroquial, que vive encerrada na sua comunidade, acontece-lhe o mesmo
que a uma pessoa encerrada: atrofia-se, física e mentalmente. Ou
deteriora-se como um quarto fechado, onde o mofo e a umidade se
expandem. A uma Igreja autorreferencial acontece-lhe o mesmo que a uma
pessoa autorreferencial: fica paranoica, autista. É verdade que, se uma
pessoa sair para rua, lhe pode acontecer o mesmo que a qualquer pessoa
comum: ter um acidente. Mas prefiro mil vezes uma Igreja acidentada a
uma Igreja doente. Por outras palavras, acho que uma Igreja que se
reduz ao administrativo, a conservar o seu pequeno rebanho, é uma
Igreja que, a longo prazo, adoece. O pastor que se encerra não é um
autêntico pastor de ovelhas, mas sim um «penteador» de ovelhas, que
passa o tempo a fazer-lhes caracolinhos, em vez de ir procurar as
outras. (...)
O problema (...) é a clericalização, pois, com
frequência, os padres clericalizam os leigos e os leigos pedem para ser
clericalizados. Trata-se de uma cumplicidade pecadora. Mas os leigos
têm uma potencialidade nem sempre bem aproveitada. Basta pensar que o
Batismo pode ser suficiente para ir ao encontro das pessoas. Faz-me
lembrar aquelas comunidades cristãs do Japão que ficaram sem sacerdotes
durante mais de 200 anos. Quando os missionários voltaram, encontraram
todos os fiéis batizados, catequizados, validamente casados pela
Igreja. Além disso, vieram a saber que todos os que tinham morrido
tiveram um funeral católico. A fé tinha permanecido intacta pelos dons
da graça que alegraram a vida dos leigos, que só tinham recebido o
Batismo e viveram a sua missão apostólica.
Também é verdade que antes se contava com uma
sociedade mais estável em termos religiosos, com «fiéis cativos», que
tinham «herdado» a fé e que, em maior ou menor medida, seguiam os
ditames da Igreja. Hoje, o «mercado religioso» é mais competitivo e as
pessoas questionam mais as orientações religiosas.
Há uns meses, demos a conhecer, em Buenos Aires, umas
orientações para a promoção do Batismo que apontam nesse sentido.
Gostaria de ler o que mencionamos na apresentação: «A Igreja, por vir
de uma época onde o modelo cultural a favorecia, habituou-se a que as
suas instâncias fossem oferecidas e abertas para aquele que viesse,
para aquele que nos procurasse. Isso funcionava numa comunidade
evangelizada. Mas, na atual situação, a Igreja precisa de transformar
as suas estruturas e modos pastorais de maneira a que sejam
missionários. Não podemos permanecer num estilo “clientelar” que,
passivamente, espera que venha “o cliente”, o paroquiano, mas temos de
ter estruturas para ir aonde precisam de nós, aonde estão as pessoas,
àqueles que mesmo desejando não se vão aproximar de estruturas e formas
caducas que não correspondem às suas expectativas nem à sua
sensibilidade.
Temos de ver, com grande criatividade, como nos
tornamos presentes nos ambientes da sociedade, fazendo com que as
paróquias e instituições sejam instâncias que lancem esses ambientes.
Rever a vida interna da Igreja para sair ao encontro do povo fiel de
Deus. A conversão pastoral chama-nos a passar de uma Igreja “reguladora
da fé” para uma Igreja “transmissora e facilitadora da fé”.»
Tudo isto pressupõe uma mudança de mentalidade...
Isto pressupõe uma Igreja missionária. Um alto membro
da cúria romana, que tinha sido pároco durante muitos anos, disse-me uma
vez que chegou a saber até o nome dos cães dos seus paroquianos. Eu
não pensei: ah que boa memória que ele tem, mas sim, que bom padre que
ele é. «Mesmo que te nomeiem cardeal, tu nunca deixas de ser o que és»,
disse-lhe. Assim foi. Há muitos exemplos. O cardeal Casaroli, que
chegou a ser secretário de Estado do Vaticano, ia a uma prisão de
menores todos os fins de semana. Fazia-o sempre de autocarro, com a sua
sotaina e a sua pasta. Um jesuíta, que gostava muito de ir às prisões,
contou-me que, quando começou as visitas, estava muito surpreendido
com o zelo apostólico de um sacerdote que lhes ensinava catequese e até
brincava com os menores detidos. Ficou tão impressionado que o escolheu
como confessor. Com o tempo descobriu que era... Casaroli!
Não deve ser fácil escapar do risco de se converter num burocrata.
Mas é fundamental evitá-lo. Pouco antes de morrer,
João XXIII teve uma longa reunião com Casaroli e, quando este se ia
retirar, o Papa perguntou-lhe se continuava a visitar os rapazes da
prisão. «Nunca os deixe», recomendou-lhe. João XXIII também era um
pastor que saía para a rua. Quando era patriarca de Veneza, às onze
horas, costumava descer até à praça de São Marcos para cumprir o
chamado «ritual da sombra», que consiste em pôr-se à sombra de uma
árvore ou à porta dos bares e beber um copinho de vinho branco e
conversar uns minutos com os paroquianos. Fazia-o como qualquer
veneziano e, depois, continuava o seu trabalho. Isso para mim é um
pastor: alguém que sai ao encontro das pessoas.
Convenhamos que não é só uma questão de sair
ao encontro das pessoas, mas de as entusiasmar. Não acha que algumas
prédicas, cheias de reprimendas, também espantam?
Claro. As pessoas afastam-se quando não são recebidas,
quando não são reconhecidas nas pequenas coisas, quando não as vamos
buscar. Mas também quando não as fazemos participar da alegria da
mensagem evangélica, da felicidade de viver cristãmente. Não é um
problema só dos padres, mas também dos leigos. Não é de bom católico
estar à procura só do negativo, do que nos separa. Não é isso o que
Jesus quer. Isso não só espanta e mutila a mensagem, como implica não
assumir as coisas, e Cristo assumiu tudo. E só é redimido o que se
assume. Se não assumirmos que na sociedade há pessoas com critérios
diferentes e até contrários aos que nós temos, e não os respeitarmos,
não rezarmos por eles, nunca iremos redimi-los no nosso coração. Não
devemos permitir que as ideologias sejam donas da moral.
A Bíblia tem os Dez Mandamentos, mas também as Bem-Aventuranças. Bento XVI destacou uma vez que a religião católica não é um «catálogo de proibições».
Estou perfeitamente de acordo. Isto está muito claro
nas suas encíclicas sobre a caridade e a esperança. Por outro lado,
quando Bento XVI foi a Espanha, todos pensaram que criticaria o governo
de Rodríguez Zapatero pelas suas divergências com a Igreja católica em
vários temas. Alguém, até, lhe perguntou se tinha falado com as
autoridades espanholas acerca do casamento entre homossexuais. Mas o
Papa manifestou que não, que falara com eles de coisas positivas, e que
depois viriam as outras. De alguma maneira estava a dizer que primeiro
é preciso sublinhar o positivo, o que nos une; não o negativo, o que
nos divide; que se deve ter prioridades no encontro entre as pessoas,
no caminhar juntos. Depois, a abordagem das diferenças será mais fácil.
Como contrapartida, não existe uma tendência crescente para uma «religião a la carte»? Para escolher o sacerdote de que mais gosto, os preceitos que menos incomodam?
É uma tendência muito comum, que responde ao
consumismo atual. Alguns escolhem uma missa pela forma como o sacerdote
prega. Mas, dali a dois meses, dizem que o que não funciona bem é o
coro, e então voltam a mudar. Há uma redução do religioso ao estético.
Vai-se mudando de gôndola no supermercado religioso. É a religião como
produto de consumo, muito ligada, a meu ver, a um certo teísmo difuso,
prosseguido dentro dos parâmetros da New Age, onde se mistura muito a satisfação pessoal, o relax,
o «estar bem». Isto está a ver-se especialmente nas grandes cidades,
mas não é só um fenômeno que se dá entre as pessoas cultas. Nos setores
humildes, nos bairros da lata, por vezes, vai-se buscar o pastor
evangélico, porque «me toca».
Mas é assim tão grave que as pessoas fiquem com a celebração que mais as comove ou com o sacerdote que mais as entusiasma?
Ou aquele que está mais de acordo com a nossa ideologia, porque dentro dessa «religião a la carte»,
às vezes, também se fazem opções religiosas baseadas na ideologia.
Escolho esta ou aquela missa porque o celebrante tem «boa doutrina» ou
porque estes ou aqueles padres são «mais abertos» ou «mais
progressistas».
Indo à sua pergunta, diria que o grave seria que tudo
isso estivesse a expressar a falta de um encontro pessoal com Deus, de
uma autêntica experiência religiosa. É isto, creio, que está por detrás
da «religião a la carte». Considero que é preciso recuperar o facto religioso como um movimento para o encontro com Jesus Cristo.
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In Papa Francisco - Conversas com Jorge Bergoglio, ed. Paulinas
Fotografias: Vaticano
Fonte: http://www.snpcultura.org/o_desafio_de_ir_ao_encontro_das_pessoas.html 27.06.13
Fotografias: Vaticano
Fonte: http://www.snpcultura.org/o_desafio_de_ir_ao_encontro_das_pessoas.html 27.06.13
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