domingo, 16 de junho de 2013

O futebol e o sadismo

Rubem Alves*
 
Eu nunca fui bom de bola. Por isso foi uma surpresa quando recebi o telefonema:

— É o Rubem Alves?

— Sim.

— Sou repórter. Meu jornal está fazendo uma pesquisa. Seu nome foi um dos escolhidos para responder a uma pergunta sobre futebol.

Estremeci, com medo de mostrar minha ignorância de nomes e detalhes.

— E a pergunta qual é? — perguntei.

— É a seguinte: Acha que time do Brasil deve jogar futebol eficiente e feio que faz gols ou jogar futebol bonito que é arte?

Suspirei aliviado. Não entendo de nomes e detalhes, mas sobre essa pergunta eu tenho opiniões precisas, que comecei a formar quando uma paciente me fez uma observação surpreendente. A gente falava sobre humor e desenhos animados. Ela chamou a minha atenção para o fato de que, nos desenhos, a gente só ri em situações sádicas. É quando o Tom cai na piscina vazia e se quebra como se fosse vaso. Ou um piano lhe cai em cima, e ele sai andando feito caranguejo. Ou quando o rolo compressor o transforma em panqueca. Desenhos bonitinhos e bonzinhos como os dos Smurfs não fazem rir. Para haver riso, é preciso que o vilão se ferre.

É claro que a gente sabe que depois de se partir em mil cacos o Tom vai reaparecer, na cena seguinte, forte e mau como sempre, sem apresentar quaisquer sinais do sucedido anteriormente. E, depois de ser reduzido à condição de caranguejo ou de panqueca, ele vai estar logo em ação de novo pois, caso contrário, o desenho acabaria.

Pensei, então, que a gente dá risada quando o vilão se ferra, mas não de forma definitiva. Ele se recupera sempre para ser ferrado de novo e de novas formas, para que o riso se repita.
Desde então fiquei brincando com a hipótese de que a alegria do futebol é parecida. Ela acontece quando a gente tem a chance de realizar um desejo sádico sobre o adversário, que é sempre o Tom na estória.

— Agora veja: o jogo foi pura arte, um maravilhoso espetáculo de balé: os passes sob medida, as fintas geniais, as articulações com a precisão de teoremas, a técnica dos jogadores semelhante à de Nureyev. Só que terminou zero a zero. Você acha que os torcedores sairão pela rua cantando e gritando: “Que bonito foi! Que bonito foi!”?

— Claro que não — ela respondeu.

— Pois é — eu continuei —, ninguém assiste futebol para ter experiências estéticas. Quem quer ter experiências estéticas vai ao teatro. A gente assiste futebol para a indescritível felicidade de ferrar o adversário, de fazê-lo sofrer. Pois você há de concordar: um gol, que é felicidade para quem faz, é dor para quem leva. A excitação do futebol existe na dialética entre o gozo e o sofrimento.

— Eu nunca havia pensado nisso — ela disse em estado de confusão.

— Pois é, existe até uma escala de gozos e de sofrimentos. Por exemplo: fazer um gol na Suécia pode dar prazer, mas o prazer não é muito grande. É um povo tão bom, tão branco, tão louro, tão simpático. A gente não tem nada contra eles. Melhor seria não fazê-los sofrer. O que não é o caso da Argentina. Ah! Que prazer divino é fazê-los sofrer, especialmente sabendo que eles pensam o mesmo da gente. O prazer de um gol contra a Argentina vale cem vezes o prazer de um gol contra a Suécia. Um gol da Argentina dói também cem vezes mais...

— Sabe? — eu continuei. — Vou lhe dizer isso quase como uma confidência. É do jeitinho da psicologia do estuprador. O que o estuprador quer não é o prazer sexual. Se fosse só isso, seria fácil: ele iria à zona ou arranjaria uma namorada. Mas nem a prostituta nem a namorada podem lhe dar o prazer que ele deseja. A prostituta e a namorada permitem a penetração e podem até gostar. Mas não é esse o prazer que ele quer. Ele quer é o sentimento de força e poder: entrar pela força, como ladrão, arrombando a porta, vencendo os esforços desesperados da outra pessoa para que isso não aconteça. Pois o gol não é isso? Enfiar a bola lá dentro daquele estreito espaço que o outro time inteiro quer guardar a todo o custo. O primeiro gol equivale a um defloramento. É o prazer de entrar, é o prazer de fazer o outro sofrer. Futebol-arte só é bonito quando o time da gente está ganhando, e serve para humilhar ainda mais o adversário. Quem diria que o gozo no futebol tem a ver com a realização de impulsos sádicos e perversos?
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* Escritor. Educador.
Fonte:  http://correio.rac.com.br/_conteudo/2013/06/16
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