sábado, 29 de junho de 2013

Democracia da imaginação: entrevista com Aleksandar Hemon

Nascido na Bósnia e radicado nos EUA, escritor lança livro de ensaios sobre trânsito
 entre culturas e a relação entre arte, 
poder e História


Por Guilherme Freitas

Em bósnio não há palavras equivalentes a “ficção” e “não ficção”, conta Aleksandar Hemon. Para o escritor, nascido em Sarajevo em 1964, também não há distinção entre o impulso que o leva a escrever contos e romances, como os elogiados “O projeto Lazarus” e “Amor e obstáculos”, e seus ensaios, reunidos pela primeira vez no recém-lançado “O livro das minhas vidas” (todos publicados no Brasil pela Rocco). Escalado na Flip para uma mesa com o francês Laurent Binet, dia 6, Hemon aborda nos ensaios temas recorrentes também em suas obras de ficção, como os desvios da memória e as articulações entre experiência individual e História.
Em um texto, lembra os dias decisivos de 1992 quando, durante uma viagem pelos Estados Unidos, viu de longe o início da guerra em seu país natal e foi aconselhado pelo próprio pai a não voltar. Em outros, fala sobre a dificuldade de adaptação (como recriar no novo país a receita perfeita de borscht, refeição preferida de sua família?) ou sobre intelectuais que colaboraram com o massacre dos bósnios. Faz também reflexões profundamente pessoais, de declarações de amor ao futebol a ruminações sobre a morte de sua filha, Isabel, quando ela tinha apenas 1 ano. De Chicago, onde vive há duas décadas, Hemon conversou por telefone com O GLOBO sobre o trânsito entre culturas e idiomas e a relação entre arte e poder: “A função da literatura não é melhorar as pessoas, e sim abrir um campo democrático de imaginação”, diz.

O GLOBO: Em um ensaio de “O livro das minhas vidas”, você lembra sua relação com Nikola Koljevic, poeta e professor que se tornou braço direito de Radovan Karadzic, líder político sérvio hoje preso sob acusação de crimes de guerra. Você escreve que, ao se dar conta da implicação de Koljevic nos horrores do regime, extirpou “aquela parte de mim que acreditava ser possível escapar da História e se esconder do mal nos confortos da arte”. Na Flip, sua mesa, sobre romance histórico, se chama “O espelho da História”. Como a literatura pode se relacionar com a História sem ser nem um espelho, nem uma fuga?

 
HEMON: A História, com H maiúsculo, cria um registro hierárquico de pessoas e eventos, atribuindo mais importância a uns ou outros, e por isso é sempre cúmplice de alguma estrutura de poder. Nesse sentido, a literatura é mais democrática do que a História, porque permite que imaginemos aquelas vidas que normalmente não são registradas em arquivos e enciclopédias. A literatura oferece um acesso imaginário a experiências diferentes das nossas e, assim, amplia os limites de nossa percepção da realidade. É por isso que regimes totalitários sempre tentam controlar não só a imprensa, mas também a literatura: para restringir a possibilidade de se imaginar uma vida diferente.

Por esse ponto de vista, a literatura não ficaria reduzida a um exercício de empatia por meio da imaginação?

Falar em empatia sugere um engajamento emocional que é parte importante do jogo da literatura, mas é claro que há outros elementos envolvidos. Quando lemos sobre a experiência de um sobrevivente do Holocausto, por exemplo, a empatia só chega até certo ponto. Muitos leitores preferem ficar numa posição confortável, só querem ter prazer lendo, e se fecham diante do que é desconfortável. Mas a literatura depende em larga medida do desconforto. Uma vez dei um curso sobre literatura e violência, no qual estudamos desde memórias de prisioneiros de campos de concentração e livros sobre escravidão aos romances de Cormac McCarthy. Notei que muitos alunos que falavam de literatura em termos de “empatia” e “sentimentos” ficavam completamente bloqueados diante de certas leituras. Eles perguntavam: “Por que eu leria algo tão distante da minha experiência? Não tenho como compreender a situação de alguém que está trancafiado à espera da morte”. E a questão é justamente essa: nem sempre se trata de “compreender”. A empatia é importante, mas a literatura também nos coloca diante do incompreensível.

Você falou sobre a “cumplicidade” entre História e poder e disse que a literatura é “mais democrática”. Mas os casos de Koljevic, um literato que colabora com o regime, e do próprio Karadzic, um tirano que já publicou vários livros de poesia, mostram que a arte também pode estar integrada a um sistema repressivo. O que você aprendeu sobre a relação entre arte e poder escrevendo ensaios sobre essas figuras históricas?

Concluí que a arte não é automaticamente enobrecedora. Você pode ler todo o Shakespeare que quiser, ou ouvir Beethoven, e ainda assim ser um criminoso de guerra. Eu me aproximei de Koljevic, quando ele era meu professor, porque tínhamos um amor comum pelos livros e eu achava que isso nos protegia dos horrores da História. Mas durante todo aquele tempo ele estivera participando ativamente desses horrores. Hoje entendo que ler não faz de ninguém uma pessoa melhor. E que a função da literatura não é melhorar as pessoas, e sim abrir um campo democrático de imaginação. Mesmo nos piores cenários, a literatura continua a ter a capacidade de ser um registro imaginário da experiência humana, ao qual será possível retornar para entender o que aconteceu e como. É preciso garantir a existência desse campo para que possamos sempre acessá-lo, mesmo que o acesso a ele, por si só, não garanta que as coisas sejam melhores.

Um tema que aparece em vários ensaios é seu trânsito entre dois idiomas, o bósnio e o inglês. Você já afirmou que, como escritor, quer “acabar com a noção de que artistas devem apenas representar a realidade”, porque a linguagem precisa sempre transpor “um abismo entre o eu e o mundo”. O fato de escrever ficção em inglês, e não no seu idioma nativo, faz com que você seja mais consciente das limitações da linguagem?

De certa forma, sim. Isso se relaciona também com os ambientes em que vivi. Na Iugoslávia estávamos imersos em propaganda ideológica, então aprendi cedo que a realidade pode sempre ser manipulada por meio da linguagem. Além disso, naquela época, o estilo literário dominante era o realismo socialista, com autores ligados ao poder que se acreditavam capazes de determinar o que era a “realidade” e o que ela não era. Quando cheguei aos Estados Unidos e passei a ler mais em inglês, antes mesmo de começar a escrever em inglês, percebi que, embora não houvesse uma pressão política ou ideológica impondo o realismo, há uma forte tradição na literatura americana que toma o realismo como um fato consumado. Para mim o problema é mais complexo. Não acredito que a realidade possa ser simplesmente “representada” sem que se questione a própria noção de realidade, e a literatura que me interessa é a que procura fazer isso.

Um dos seus “métodos” para aprender inglês nos Estados Unidos foi ler Nabokov, outro escritor que criou grande parte de sua obra em um idioma adotado. O que as obras dele e de outros autores que transitaram entre idiomas significam para você?

Nabokov foi fundamental para mim, mesmo antes de eu chegar aos Estados Unidos. Me interesso muito por autores que escreveram em um idioma não nativo, como ele, Beckett e Conrad. Mais do que isso, me interesso por autores que mantiveram uma relação tensa com o idioma e a cultura em que escreveram. Penso em Bruno Schulz, por exemplo, um judeu polonês que passou a vida inteira em um mesmo vilarejo que, devido aos conflitos da primeira metade do século XX, pertenceu a cinco países diferentes. E penso em Kafka, que fez parte de minorias em vários sentidos, um judeu que escrevia em alemão em Praga, primeiro sob o Império Austro-Húngaro e depois parte da Tchecoslováquia. Não por acaso, encontramos nesses autores formas muito inventivas de lidar com a questão da “realidade” e com a articulação entre experiência pessoal e História.

Você já escreveu sobre o fato de que em bósnio não há palavras equivalentes a “ficção” e “não ficção”. Para você, quais são as distinções entre uma e outra?

Para mim, o conceito amplo de literatura transcende os termos “ficção” e “não ficção”, porque implica um engajamento com o campo da linguagem por meio de vários modos e gêneros. Sempre pensei na literatura dessa forma e, talvez por isso mesmo, escrevo ficção e não ficção sem considerá-las instâncias tão afastadas. O que as aproxima é a ideia de narrativa. São parâmetros diferentes de narrativa, claro: em ficção podemos enfeitar um pouco mais e as expectativas do leitor em relação ao texto são diferentes. Mas o impulso que me move é sempre o mesmo: contar histórias.
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Fonte:  http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2013/06/29/democracia-da-imaginacao-entrevista-com-aleksandar-hemon-501613.asp

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