Entrevista com Michael Sandel
É suficiente que um troca de mercado seja livre e voluntária
para que ninguém possa se opor a ela? Devemos realmente ser indiferentes
com relação ao conteúdo das preferências individuais, como o pensamento
econômico dominante tende a considerar? Ou há bens que o dinheiro não
deve poder comprar? E quais? Até que ponto podemos aceitar que se
estimule o poder do dinheiro? Ao contrário, quando temos boas razões
para evitar que um bem se torne mercadoria? Quando, enfim, a moral deve
ditar leis ao mercado?
Essas e outras perguntas tentam ser respondidas por Michael Sandel, filósofo político que leciona em Harvard, no seu livro recém-publicado O que o dinheiro não compra
(Ed. Civilização Brasileira, 2012, 240 páginas). São respostas que
partem de exemplos concretos: das celas mais confortáveis para presos
dispostos a pagar um extra, aos ingressos para as missas do papa,
passando pelo direito de pular filas (pagando, é claro), a venda de
sangue, o útero de aluguel, as tatuagens publicitárias permanentes, a
terceirização da guerra a companhias privadas, os futures sobre
o terrorismo. E são respostas que geram outras interrogações, em uma
trama ao mesmo tempo simples e sofisticada, que, no fim, chama o leitor a
uma pronúncia moral: é certo que o dinheiro decida como distribuir um
certo bem?
Michael Sandel é professor da cátedra Anne T. e Robert M. Bass de Governo da Universidade de Harvard, onde também lecionou filosofia política. Com o seu livro Il liberalismo e i limiti della giustizia,
publicado em 1982 e traduzido para o italiano pela editora Feltrinelli,
ele se credenciou como um dos principais críticos da teoria da justiça
de John Rawls, à qual ele critica substancialmente por
ter adotado uma concepção da pessoa moral pouco plausível e por ter
ignorado, em nome do ideal da neutralidade da justiça, o papel
"político" que as concepções do bem individual acabam tendo.
Ele é conhecido do grande público principalmente pelas suas palestras sobre a justiça, que inspiraram o best-seller mundial Justiça: O que é fazer a coisa certa (Ed. Civilização Brasileira, 2011, 352 páginas) e que estão disponíveis on-line no site www.JusticeHarvard.org.]
Em O que o dinheiro não pode comprar, Sandel
levanta questões prementes sobre o papel apropriado dos mercados e do
dinheiro nas sociedades democráticas contemporâneas, esperando ao mesmo
tempo o início de um debate público sobre como os bens devem ser
distribuídos.
Eis a entrevista.
O subtítulo do seu livro é "Os limites morais ao mercado".
Isso já diz muito sobre o seu objetivo principal. O que o senhor tinha
em mente quando o escreveu?
Um dos objetivos do livro é desafiar o modo pelo qual o pensamento
econômico é concebido hoje. O livro tenta se contrapor a um certo modo
dominante pelo qual é interpretado o papel do mercado e, em particular,
tenta pôr em discussão a ideia de que a economia é uma ciência
moralmente neutra do comportamento humano. Em torno do século passado, a
economia sempre se apresentou como uma ciência neutra com relação aos
valores, que, portanto, nunca tomava posição sobre os mecanismos de
mercado e sobre as preferências das pessoas. Eu penso, ao invés, que ela
deve ser vista como uma parte da filosofia moral e política,
principalmente hoje que a economia busca oferecer um modelo capaz de
explicar toda a existência.
Esse modo de ver as coisas não vai agradar os economistas...
Não é surpreendente que os economistas tentam resistir às teses
contidas no meu livro. Eles tentam separar a economia da filosofia moral
e política e podem ser suspeitos com relação a uma contribuição como a
minha, que, ao contrário, tenta definir a natureza da economia como
disciplina não autônoma. Mas eu quero apenas que se desenvolva o debate e
espero que o meu livro possa encorajá-lo. Também foi por isso que eu
escrevi um livro seguindo um estilo expositivo que fosse acessível a
todos, e não um livro somente para acadêmicos. E é por isso que eu
utilizei muitos exemplos e histórias diversas para ilustrar os pontos
filosóficos que eu pretendia levantar de vez em quando. Eu fiz dessa
forma porque a questão do papel do mercado na nossa sociedade é uma
questão importante demais para não ser abordada abertamente em nível
público.
Por que, a seu ver, aqueles que falam de limites morais do
mercado são vistos com ceticismo (quando tudo corre bem) ou com desprezo
(quando tudo vai mal)?
Eu penso que as pessoas resistem à ideia de que o mercado tem limites
morais fundamentalmente por duas razões. A primeira é que o mercado é
visto como algo que produz crescimento econômico e bem-estar. Com
relação a isso, que fique claro, eles estão certos, e o meu livro não é –
quero esclarecer – contra a economia de mercado como tal. O meu livro,
no máximo, visa a colocar no mercado no seu devido lugar. É isso que eu
quero dizer quando invoco a necessidade de pôr "fronteiras" éticas.
A segunda razão, ao invés, é mais profunda e tem a ver com o fascínio
que despertam os mercados para a relação que eles mantêm com a
liberdade ou, melhor, com uma certa ideia de liberdade. Com base nisso, o
núcleo é a arbitrariedade da escolha, e as pessoas a expressam entrando
em relações de troca voluntária umas com as outras. Algumas trocas têm a
ver com bens materiais, como os carros ou as torradeiras; outras, ao
invés, têm um aspecto fortemente, digamos assim, moral, como no caso da
compra e venda de rins ou do útero de aluguel, ou ainda mais banalmente
quando é preciso decidir se devemos pagar as crianças para ler livros. E
não podemos evitar esse aspecto moral, e é por esse motivo que – como
eu tentei argumentar no livro – a liberdade não se reduz à do
consumidor.
O senhor está dizendo que o dinheiro oferece somente uma liberdade "manca"?
Sim, a liberdade que exercemos no mercado é apenas uma parte da nossa
liberdade, não é "inteira". É uma ideia de liberdade entendida como
neutralidade, em virtude da qual renunciamos a nos interrogar sobre
quais são os modos de viver que consideramos corretos ou quais
consideramos equivocados; renunciamos assim a considerar mesmo que
apenas a hipótese de que a liberdade do consumidor pode se degradar ou
corromper os bens que são objeto de compra e venda. Mas assim como
existe também uma liberdade que possuímos como cidadãos, também devemos
nos perguntar, por exemplo, se o útero de aluguel corrompe a ideia de
paternidade, ou se oferecer uma compensação às crianças para que leiam
livros corrompe o valor da leitura.
Parece que o senhor exige a necessidade de um maior debate público, mesmo às custas de produzir maior polêmica...
Justamente isso. As pessoas na sociedade de hoje estão em desacordo
com relação aos valores, aos modos de vida, às virtudes cívicas, e
talvez seja por isso que existe e é forte a tentação de externalizar as
questões morais ao mercado, na ideia de que os mercados são instrumentos
neutros que distribuem os bens segundo as preferências das pessoas. Mas
eu acho que isso é um erro.
Desse modo, de fato, o discurso público democrático se torna cada vez
mais vazio, cada vez menos interessante, e nós perdemos a capacidade de
nos envolver nos debates sobre as grandes questões. Em parte, o
objetivo do livro é mostrar que o mercado não é um instrumento neutro e
não pode definir o que é certo e o que é errado, nem qual é a natureza
dos bens que produzimos. Mas também é um lembrete à responsabilidade que
nós temos como cidadãos de regimes democráticos, que não podem não
discutir entre si sobre o papel apropriado para os mercados e sobre
quais bens devem ser subtraídos daqueles.
É muito instrutiva a discussão que o senhor faz sobre a caça à
morsa. Os fatos: o governo canadense autorizaza os Inuit a caçar um
certo número de morsas, como isenção cultural com relação a uma regra
geral que impunha a proibição. Estando as morsas nas listas que os
caçadores tentam completar, os Inuit propuseram ao governo que cedesse,
mediante compensação, o direito de caça aos caçadores não Inuit,
mantendo para si, contudo, a carne e a pele dos animais mortos. O
governo aceitou. Mas quem assistiu à caça à morsa definiu-a como "atirar
a uma poltrona muito grande", um exercício de nenhum dificuldade...
Esse também é o seu ponto?
Eu penso que o exemplo da morsa é muito interessante, porque todos parecem ganhar e ninguém parece perder: ganham os Inuit,
que obtêm renda extra, e os caçadores, que completam a sua lista; o
governo não perde com isso, sendo indiferente a quem materialmente mata
as morsas; e as morsas que são mortas pelos caçadores são os mesmos que
seriam mortas pelos Inuit. No entanto, existe algo a se objetar a essa
prática.
A meu ver, duas são as objeções possíveis. Uma delas é que o desejo
do caçador de atirar contra uma morsa não tem nada de vagamente
desportivo; não há nenhum perigo, como, ao invés, pode haver na caça,
sei lá, de um tigre. Onde está o risco, onde está o desafio em atirar em
um animal que não opõe resistência nem tenta fugir? Parece-me um desejo
indigno e perverso, mesmo que traga dinheiro para os bolsos dos Inuit. É
claro que essa objeção se fundamenta em algum tipo de juízo moral, que
nos pede que nos pronunciemos sobre o fato de que uma prática possa ser
repugnante ou pouco admirável. Eu acrescento, porém, também uma segunda
razão para objetar a essa prática.
As isenções culturais historicamente têm como finalidade conciliar
certos estilos de vida tradicionais e culturalmente fundamentados: uma
coisa, porém, é oferecer-lhes reconhecimento, outra é converter esse
reconhecimento em um negócio. Em outras palavras, os Inuit, cedendo ao
seu próprio direito de matar as morsas, transformam em uma operação
comercial o reconhecimento público comercial da própria cultura e
contribuem para corromper o significado original da isenção de que são
titulares.
A última pergunta só pode se referir à situação que estamos
vivendo hoje. Vivemos uma época em que só se fala de dinheiro, mas não
tanto do dinheiro que se pode acumular com o capitalismo, mas sim do
dinheiro que falta para as famílias para chegar até o fim do mês e para
os jovens para construir o seu futuro. Em suma, o livro fala de
dinheiro, enquanto estamos no meio da crise. O senhor acha que os
economistas, ao menos os economistas dominantes, têm alguma
responsabilidade pela crise financeira que estamos passando?
Os economistas, como indivíduos, certamente não. Mas eu acho que um
certo modo de ver as coisas, um modo de ver que podemos definir como
"economicista" forneceu o pano de fundo que, em certa medida, favoreceu a
crise. A crise financeira, afinal, chegou ao término de três décadas
caracterizadas pela fé no triunfalismo dos mercados, durante as quais o
mercado como mecanismo para distribuir os bens adquiriu e gozou de
grande prestígio. Em 2008, quando chegou a crise, eu estava convencido
de que assistiríamos ao fim da era do triunfalismo dos mercados e
pensava que haveria uma oportunidade para um sério debate público sobre o
papel dos mercados nas sociedades democráticas contemporâneas. É
curioso que isso não tenha acontecido, não?
----------------------
A reportagem é de Corrado Del Bò e Eleonora Marchiafava, publicada no jornal Il Manifesto, 12-06-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: IHU on line, 15/06/2013
Imagem da Internet
Nenhum comentário:
Postar um comentário