João Godinho/AE
Mais de 1 milhão de brasileiros foram às ruas protestar
Há duas décadas, o Brasil só faz avançar - e no entanto ninguém aguenta mais
Enfim concedida a revogação dos aumentos das tarifas de
transporte nas duas principais metrópoles brasileiras, Rio de Janeiro e
São Paulo, a tarde de quinta-feira se anunciava como o momento de
comemoração para o movimento cívico e apartidário que tomou as ruas do
País nas últimas duas semanas. O que se viu, no entanto, foi a expansão
incontrolável dos protestos, com mais de 1 milhão de pessoas em cerca de
cem cidades brasileiras. E, embora o tom geral das massas de
manifestantes se mostrasse pacífico, cenas de conflito e vandalismo
foram vistas por toda parte. Em Brasília, três ministérios foram
depredados. No Rio, 62 pessoas ficaram feridas. No interior paulista, um
jovem manifestante morreu atropelado e, em Belém, uma gari perdeu a
vida após inalar gás lacrimogêneo lançado pela polícia.
No calor de acontecimentos que atingem proporções inéditas desde a
redemocratização brasileira, o filósofo Paulo Arantes desfia, na
entrevista a seguir, as perplexidades do "país do futuro" - que afinal
chegou, trazendo consigo antigas contradições. "A vida no Brasil sem
dúvida melhorou, e muito, nestas duas décadas de ajuste ao capitalismo
global. No entanto, ninguém aguenta mais", afirma o professor aposentado
da USP e doutor pela Universidade de Paris X, Nanterre.
Para Arantes, nunca é demais lembrar que o Maio de 1968 na França
também eclodiu em um contexto de crescimento econômico, pleno emprego e
políticas de bem-estar social. Comparação que, no entanto, para por aí. E
que se as "jornadas de junho" nacionais, como o filósofo as chama,
referenciam-se de fato em rebeliões altermundistas como a de
Seattle-1999 ou de Nova York-2011, encontram no Brasil ambiente ainda
mais explosivo, "tamanha a desagregação social em que nos enfiamos". E
avisa: para evitarmos o risco de uma derivação autoritária, será preciso
que governantes municipais, estaduais e federais deixem de lado suas
"cabeças de planilha" e levem a sério a reivindicação radical de
cidadania expressa nas ruas.
‘Perplexidade’ foi a palavra mais usada na descrição dos últimos acontecimentos em todo o País. O sr. também ficou surpreso?
É verdade, só hoje de manhã li pelo menos três artigos confessando
"perplexidade" diante dessas realmente espantosas "jornadas de junho".
Cada um com o seu assombro diante da "mais expressiva, surpreendente e
rápida vitória popular de nossa história", nas palavras do cientista
político Rubens Figueiredo, que atribui a rendição dos governantes
locais, Estado e município, à "potência e capacidade de mobilização das
redes sociais". O que os ideólogos da sociedade em rede estão chamando
de autocomunicação, Kant falaria em uso público da razão. Seja como for,
mais um motivo de espanto. Voltemos às três visões perplexas. O
cronista, que admite não estar entendendo nada e exige a mesma franqueza
dos demais, da imprensa, dos políticos e dos próprios manifestantes; o
correspondente internacional, que talvez tenha vivido anestesiado pela
rotina da profissão, cobrindo anos de prosperidade festejada pelos
investidores estrangeiros; o veterano do mundo petista agoniado pelos
sinais alarmantes de fadiga da estratégia de mudanças sem ruptura, com
dez anos de conquistas dentro da ordem e níveis coreanos de aprovação
eleitoral arriscando ir para o vinagre à menor gota d’água.
Como entender esses sinais, em um contexto de baixo desemprego e de crescimento, ainda que modesto, na economia?
A vida no Brasil sem dúvida melhorou, e muito, nestas duas décadas de
ajuste ao capitalismo global. No entanto, ninguém aguenta mais. Essa a
dissonância básica, ainda mais estridente quando o contexto é de baixo
desemprego, como você bem lembrou. Não seja por isso. Sei que a
comparação frisa o disparate, mas não custa recordar que o maior
movimento contestatário da segunda metade do século 20, disparado pelo
maio francês de 1968, ocorreu justamente no auge de um ciclo inédito de
crescimento econômico, pleno emprego e Estado social a todo vapor, sendo
que três meses antes da explosão o mais acatado colunista da época
publicara um artigo descrevendo a França como um país entorpecido pela
autossatisfação. A herança do Maio, entretanto, já se disse, é uma
herança impossível. E a moçada do Passe Livre sabe muito bem disto: onde
havia um horizonte de superação, existe uma ratoeira. Essa armadilha é o
Brasil do futuro que afinal chegou. Como disse um poeta, "o horizonte
sorri de longe e arreganha os dentes de perto". Por exemplo, a brilhante
dentadura do PM baixando o porrete no casal de namorados num bar da Av.
Paulista.
De que maneira o Passe Livre, que teve início em 2005, se
aproxima e se diferencia dos movimentos sociais a que estávamos
acostumados no Brasil?
O Movimento Passe Livre, como de resto seus congêneres nascidos da
galáxia altermundista, sobretudo os descendentes da velha tradição da
Ação Direta, discrepa dos movimentos sociais clássicos, para não falar é
claro, dos partidos da esquerda histórica, embora seja igualmente
temático como os demais movimentos, e obviamente de esquerda. É filho de
Chiapas, Seattle, etc., das lutas contra a OMC, Alca & cia. Sua
família é por certo a dos autonomistas. E, embora restrito a um foco
único, é maximalista, como estamos vendo agora: a meta é a tarifa zero.
Cuja razoabilidade demonstrada nas suas cartilhas de clareza igualmente
máxima são exemplares como introdução prática à crítica da economia
política. Pelo tênue fio da tarifa é todo o sistema que desaba, do valor
da força de trabalho a caminho de seu local de exploração à violência
da cidade segregada rumo ao colapso ecológico. Simples assim, por isso,
fatal, se alcançar seu destinatário na hora social certa, como parece
estar ocorrendo agora.
Daí a ressonância de uma causa como a da ‘tarifa zero’, tida como inviável?
Exato. E são tão afiados no manejo do melhor argumento contra a
aberrante insensatez do atual modelo de transporte coletivo - e
socialmente convincentes, como estamos vendo -, que, em contraste, as
planilhas dos governantes parecem, elas sim, cifras fantasiosas
ornamentando o jogo das concessionárias que se conhece. Mas de tanto
levarem às cordas essas raposas das planilhas criativas, a expertise
adquirida no processo foi aos poucos colando, num só personagem, o
libertário e o gestor ideal de políticas públicas "igualitárias". Não
estou insinuando que cedo ou tarde esses jovens estarão operando do
outro lado do balcão - como já o fazem no âmbito da cultura digital, no
qual a livre associação de livres produtores revelou-se o melhor caminho
para gerar empreendedores shumpeterianos e novos formatos de negócios,
como se diz no jargão do capitalismo cognitivo. Não à toa, demonstra-se
por a+b que a circulação urbana planejada à luz de uma tarifa zerada
exponenciaria a performance econômica de uma cidade, e estenderia o
direito à cidade. Uma ruptura de época está nos arrastando para uma
outra praia não menos conflagrada e na qual os europeus já vivem há
tempos: onde em torno dessas famigeradas políticas públicas de gestão de
um presente congestionado - da segurança à moradia - um grupo se
amotina e as correspondentes instituições coercitivas fecham o cerco.
Por isso na Av. Paulista um dia é pau outro dia é flor.
Além da reivindicação ‘irrealista’ da proposta de tarifa
zero, fala-se muito sobre o ‘caráter difuso’ dos protestos. O sr.
concorda?
Me parece muito mais insensata a hipótese contrária, de que centenas
de milhares de pessoas ganhem as ruas para pedir a Lua. O engenheiro
Lúcio Gregori, secretário de Transportes na cidade de São Paulo no
governo Luiza Erundina, tem dito para quem quiser ouvir que só a
horrenda política tributária no Brasil impede a gratuidade no transporte
coletivo, tão viável quanto o SUS, escolas públicas e coleta de lixo.
Quanto ao "caráter difuso" das demandas, trata-se de um bordão
pejorativo porque, em sua infinita variedade, além de serem de uma
espantosa precisão - nada menos do que tudo, como o Terceiro Estado em
1789 queria tudo por não ser nada -, elas sugerem um limiar que no fundo
ainda não se ousou transpor.
Muitos têm dito também que as manifestações são o equivalente
brasileiro de movimentos como o da Primavera Árabe e o Occupy Wall
Street. A comparação procede?A Primavera Árabe são
outros quinhentos. Salvo a tática de ocupação de um local emblemático e o
ímpeto do enfrentamento, nada a ver. Da geopolítica - estão no olho do
furacão de uma guerra pela ordem mundial - à mescla de trabalhadores
pobres e populações destituídas com uma religião militante e suas
violentas divisões sectárias. Já o similar do Occupy americano
reproduziu-se por aqui há dois anos, mas passou desapercebido, encoberto
pela melhora dos índices de Gini no País. Na Turquia sim, um par de
analogias salta aos olhos, porém não mais do que isso, pois estamos
falando de um país-membro da Otan e implicado numa guerra civil no
vizinho árabe: também um estopim com cara de causa menor, a desfiguração
de uma praça entregue à especulação imobiliária, do outro lado da
barreira, um governante com altos índices de aprovação e por isso mesmo
acometido da apoteose mental que conhecemos bem, enterrado até o pescoço
em megaprojetos para lá de duvidosos. Quanto aos Indignados espanhóis, é
inegável o ar de família, menos quanto ao desfecho conservador, embora
ninguém saiba qual será o nosso, tamanha a desagregação social em que
nos enfiamos: uma imponderável deriva à direita pode ocorrer a qualquer
momento. O fato é que há mesmo muita "indignação" de um tipo novo nas
ruas brasileiras em ebulição, tão nova essa indignação que ousou tocar
no santo dos santos, a Copa. E olhe que acompanho futebol desde 1950,
nunca vi ninguém se atrever a tamanha profanação. O papa não perde por
esperar...
A imagem de estádios de Primeiro Mundo em contraponto a serviços públicos de terceiro deu força à tal ‘revolta da catraca’?
O estopim da tarifa também passou por aí, e para além do importante
movimento dos atingidos por megaeventos, alcançou a imaginação da massa
infeliz condenada à catraca: queremos tarifa com padrão Fifa - bem como
hospitais, escolas, creches, no mesmo padrão Fifa de qualidade. Humor
popular direto ao ponto, porém um tantinho inquietante: então seria esse
o metro da "cidadania social" a que se aspira? Luxo e apropriação
direta dos fundos públicos? A proximidade com os Indignados europeus dá
mesmo o que pensar. Fica no ar a dúvida: e se tivermos ingressado
finalmente na era dos protestos desengajados - como os qualificou um
sociólogo britânico -, quando protestar se tornou uma questão
estritamente pessoal, e o ativismo, a rigor, um estilo de vida? Em
fevereiro de 2003 1 milhão de pessoas foram às ruas na Grã Bretanha em
protesto contra a iminente invasão do Iraque. Recolhidos cartazes e
bandeiras, não deixaram nenhum rastro social ou político pelo caminho,
salvo a palavra de ordem famosa "não em meu nome", isto é, não me
envolvam nessa barganha de sangue por petróleo. Na mesma linha, outro
conhecedor da cena inglesa observou que os europeus que promovem festa e
casamento durante os protestos o fazem porque sabem que as
demonstrations só demonstram para os próprios demonstradores. Quando a
maré virou, e a vara de condão da PM "transformou" vândalos em
indignados pacificamente distribuídos por nichos genéricos de demandas, a
narrativa midiática dos acontecimentos não precisou forçar a mão para
desviar-se do gatilho do movimento - e apresentar a manifestação como um
fim em si mesma. Essa a moldura do imortal "está lindo vocês nas ruas"
Essa alternância entre vandalismo e cidadania foi o que tornou os protestos tão difíceis de decifrar?
Acho que há menos mistificação do que supõe a socióloga da FGV Silvia
Viana, ao notar, num ótimo artigo, que são tantas as negativas - "não
são só os 20 centavos, não é só o transporte, não é só a Copa..." - que o
movimento parece um protesto por nada. Mas não é o que diz uma jovem
manifestante, ao ser indagada sobre as motivações de sua presença no
ato: "Olha, eu não consigo imaginar uma razão para não estar aqui". O
teórico alemão Wolfgang Streek traduziria um pouco à la bruta: vim
consumir política, no caso, repudiar um sem-número de "produtos", a
saber tais e tais políticas públicas que não me satisfazem. Se não me
engano, foi esse o ponto da entrevista do professor José Garcez Ghirardi
(Em Trânsito", 16/6), domingo passado neste mesmo caderno. Alguém
observou que muitas palavras de ordem nos protestos decalcavam slogans
publicitários, a começar pelo "Grande Despertar" de uma marca de uísque.
E o próprio ‘vem pra rua’, da propaganda de uma fábrica de automóveis...Puro
agitpub: o autor da boutade acrescentou que se tratava menos de ouvidos
treinados por jingles do que casos de detournement espontâneo à maneira
dos situacionistas franceses. Mas, e se não for bem assim? À notícia da
capitulação, o bom senso tático da esquerda tradicional recomendaria
uma pausa para consolidação das conquistas. Parece não ser mais o caso.
Nas palavras de um ativista, não só em solidariedade às outras cidades
que ainda estão na luta, mas porque uma pauta puxa a outra, "a
mobilização não pode parar, a cultura da mobilização não deve parar".
Mas precisamos, sim, parar para pensar, antes de celebrar o que quer que
seja, salvo a derrota acachapante dos reis da planilha. Um coletivo de
estudiosos e militantes da questão social no Brasil poderia muito bem
dizer que essa mobilização permanente tem menos a ver com a mobilização
total de uma sociedade de consumo do que com a implicação, e o
"engajamento", das pessoas arrastadas pelo novo assalariamento
vulnerável, que estão ralando e padecendo e no entanto engajadas em duas
frentes, a do trabalho que ninguém gosta de ver estropiado por chefias
despóticas e avaliações espúrias e a do senso do vínculo social a ser
reconquistado que decorre dessas engrenagens desenhadas para infligir
sofrimento. Quem sabe não virá também dessa outra fonte de energia
social o som e a fúria que se vê nas ruas?
Do ponto em que estamos, já é possível vislumbrar em que isso tudo vai dar?
Até agora mais ou menos cem cidades com
manifestações marcadas ou já ocorrendo. Era de 70% de aprovação no
Datafolha, segundo consta, o índice do Movimento das Diretas no seu
começo. Como lhe dizer que estou entendendo o que seria inconcebível dez
dias atrás? E olhe que o povo lulista - na acepção precisa que lhe deu o
cientista político André Singer - mal começou a dar o ar de sua graça:
tarifa zero dentro da ordem seria demais para o seu "horizonte de
desejo", para usar a ótima expressão de Wanderley Guilherme? E quando o
desemprego voltar com o tremendo arrocho fiscal pela frente? Deixará de
lado a saída empreendedorista pela ação coletiva? Como reagiria a classe
média, que até agora extravasou seu ressentimento atávico contra um
pouco de tudo, na hora em que a gente diferenciada deixar de ser apenas
uma ameaça virtual? Salvo a Copa, o consenso em torno do Brasil
emergente ainda não foi arranhado. Se em algum momento se sentir sob
ataque, reagirá como de hábito, cerrando fileiras em torno de um campo
popular ad referendum, os cenários pré-64 sairão das gavetas mais uma
vez, etc. Muitas dissonâncias portanto nessa unanimidade toda, além do
mais fabricada pelos âncoras transmitindo ao vivo o impensável na
pasmaceira dos últimos anos.
Na sexta-feira, já ficava clara não só a apreensão da Fifa em
relação à Copa do ano que vem, mas a do Comitê Olímpico Internacional
sobre a Olimpíada de 2016 no Rio de Janeiro. São preocupações fundadas?
A Copa do Mundo não está indo para o
vinagre apenas porque está ficando cada vez mais claro o engodo da
redenção urbana operada por megaeventos do gênero. A ficha que caiu
agora é o escândalo do seu tremendo custo público alavancando lucros
privados inconcebíveis. Temos um ano pela frente, num cenário de
retrocesso econômico, de volta à ortodoxia do primeiro mandato de Lula,
tempo suficiente para que amadureça a percepção pública do real
significado da Lei da Copa, essa sim uma verdadeira lei de exceção.
Veremos de perto, entre outras derrogações e violações, o exercício da
soberania corporativa sobre territórios e populações. Não faltarão
gatilhos para outra onda de manifestações em cascata: tem muita gente
com coceira nos dedos.
O sr. disse certa vez que o pensamento crítico brasileiro
encontrava-se em ‘coma profundo’. Parafraseando um dos slogans mais
cantados nos atuais protestos (‘o povo acordou’), acha que ele pode
despertar agora?
Vasto assunto. Como o dito pensamento
crítico brasileiro prestou relevantes serviços à inteligência nacional,
por que não deixá-lo descansar em paz?
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Reportagem por Ivan Marsiglia - O Estado de S. Paulo
Fonte: Estadão on line, 23/06/2013
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