Paulo Ghiraldelli Jr*
“Pensamento mágico” é um pensamento que
antes “explica” que explica. Fala em termos de relações que desprezam
causalidade e racionalidade, elementos chaves do pensamento racional.
Desse modo, tudo pode se transformar em tudo, e se surgir nele algo do
nada, não é alguma coisa de se estranhar. Acostumamos, na filosofia, a
dizer que o pensamento mágico está para rapsodo, o cantador das poesias
mitológicas, assim como o pensamento racional está para o filósofo, o
pensador autêntico. É assim que, em geral, todos nós escolarizados
entendemos o pensamento mágico.
Marilena Chauí inventou de dizer que há
uma “dimensão mágica” engajando os jovens (e outros participantes) nas
manifestações de junho de 2013, as manifestações que eu tenho chamado de
“a revolução do indivíduo”. Por meio de um marxismo difuso, ela assim
formula sua observação:
“[o protesto] assume
gradativamente uma dimensão mágica, cuja origem se encontra na natureza
do próprio instrumento tecnológico empregado, pois este opera magicamente, uma vez que os usuários são, exatamente, usuários e, portanto, não possuem o controle técnico e econômico do instrumento que usam – ou seja, deste ponto de vista, encontram-se na mesma situação que os receptores dos meios de comunicação de massa.
A dimensão é mágica porque, assim como basta apertar um botão para tudo aparecer, assim também se acredita que basta querer para fazer acontecer.
Ora, além da ausência de controle real sobre o instrumento, a magia
repõe um dos recursos mais profundos da sociedade de consumo difundida
pelos meios de comunicação, qual seja, a ideia de satisfação imediata do
desejo, sem qualquer mediação” (Teoria e Debate) (grifos meus)
Lendo este trecho fico com a impressão
que há magia, sim, mas única e exclusivamente no modo com que Marilena
Chauí pensa. Por que ela imagina que teríamos de ser proprietários da
Internet, e não apenas usuários, para que a manifestação nossa, criada a
partir de troca de informações na Internet, fosse válida? Por que ela
imagina que, por sermos usuários, não conhecemos a tecnologia
necessária, enquanto usuários, para poder utilizar a Internet na
organização do movimento de protestos, organização esta que ela nega ter
existido e nega que poderá existir?
Caso ela pense que pode utilizar o
marxismo como ela está utilizando, ela erra feio. Marx jamais escreveu
ou pensou assim. A dizer que o operário estava alienado em sua dimensão
subjetiva porque estava objetivamente alienado dos meios de produção,
Marx estava pensando no quanto o capitalismo como um todo podia criar
uma metafísica ou, nos temos dele, uma ideologia, por meio das inversões
que receberam o nome de fetichismo e reificação. Essas análises de Marx
podem ser usadas pelo marxismo, mas não podem ser enfiadas em qualquer
situação particular para dizer que as pessoas, uma vez não sendo donas
das coisas com que operam, agirão acreditando em mágica ou participando
de uma mágica. Isso é uma tolice.
Marilena Chauí não está com problemas só
no entendimento da horizontalidade do movimento de protesto. Ela está
com problemas cognitivos diante da tecnologia do mundo contemporâneo. No
entanto, sociologicamente falando, o princípio dessa tecnologia não é
tão diferente da tecnologia do livro.
Vejamos a tecnologia do livro funcionando. Vamos montar o quadro.
Marilena Chauí está em sua casa, e
acabou de escrever um longo texto, que ela quer que chegue a um
determinado público de modo a convencer aquele público a pensar e agir
segundo o que ela quer. Feito isso, ele envia os manuscritos para uma
editora, lugar em que há um empresário que vai produzir e veicular o
livro dela para os leitores, aqueles que ela quer influenciar. Esse
empresário, o Editor, vai publicar o livro se este antes de tudo lhe der
dinheiro e prestígio. Dinheiro para ele e prestígio para a empresa, a
editora. Ele vai ponderar sobre o conteúdo. Caso o conteúdo lhe dê
dinheiro, mas em médio prazo der à sociedade subversão social, ele irá
ponderar entre se vale a pena ganhar agora e perder depois. Caso possa
apostar que não perderá, então publicará o livro. Marilena Chauí, como
todos nós intelectuais, já incorporou esse mecanismo, que trabalha na
nossa cabeça quase que imperceptivelmente, e sua escrita pode até sair
radical, mas não o suficiente para não ser publicada. Desse modo, ela
ganhará dinheiro, e também ganhará o empresário que, pesando os prós e
contras, terminará por publicar. O livro chegará ao leitor e será uma
peça com origem na “produção capitalista” como outra qualquer. Mas,
pior, exercerá sobre o leitor, de certo modo, uma mágica. Será a mágica
de lhe dizer verdades, pois o livro não terá consigo, em suas páginas,
apenas a força de legitimidade da exposição racional, mas terá também a
força da autoridade (ou quase um autoritarismo) de Chauí (com parte de
sua autoridade vinda da instituição Universidade) e do Editor (com a
autoridade do Dinheiro). E tudo isso cairá sobre o leitor sem que ele
possa responder ou perguntar. Afinal, o Editor não publicará o livro do
leitor descontente. Pode-se até desconfiar se haverá leitor descontente,
após toda a máquina de propaganda da Universidade e da editora,
capitalisticamente, começarem a funcionar.
Como se pode notar, eis aí a dimensão
mágica que, para Marilena Chauí, é válida, pois lhe favorece. Agora, se a
comunicação se dá de dupla mão, ela não participa. Ela não quer falar e
ouvir. Ela quer só falar e mandar. Então, a Internet não serve para
ela. Não tem o mesmo peso capitalista e autoritário do livro. A Internet
exigiria de Marilena uma conversação com força racional que ela teme
não ter, então ela não participa e, desse modo, condena. As uvas estão
verdes, diz a raposa. Mas, na verdade, o que ocorre é paúra mesmo, medo
atroz do debate horizontal, do qual ela nunca participou, pois está há
anos no exercício autoritário do debate vertical. Vale aqui lembrar a
avaliação de Sócrates a respeito da escrita, como está no Fedro, de
Platão: o livro é burro, ele sempre responde à mesma coisa, seja lá qual
forem as perguntas que possamos fazer. Marilena gosta do livro, odeia a
Internet, a Internet a obrigaria à dialética, ao trabalho filosófico de
“dar e pedir razões” no mesmo contexto temporal, e disso ela foge como o
Diabo foge da Cruz.
Marilena Chauí acha a Internet “mágica”,
no fundo, não pelos pressupostos marxistas que ela usa para analisar,
aliás, erradamente, as mídias em geral. Ela pensa como pensa porque ela
própria é uma pessoa que não consegue lidar com a tecnologia. Então, ela
própria vê a máquina como mágica. Ela não vê a máquina editorial
funcionando, desse modo não aplica a mesma coisa a uma tal máquina. O
livro é natural, a Internet não – ela pensa assim porque não entendeu
nem o livro e nem a Internet.
Outro erro fantástico da professora
Chauí é ela acreditar que os participantes dos protestos, os usuários da
Internet, apertam um botão e então acreditam que seus desejos estão
satisfeitos. Quem ela pensa que são os jovens, bebês?
Ela não sabe que o botão tocado acionou
apenas um aviso para o colega, de modo a marcar um lugar para o encontro
do protesto. Ela não sabe que o botão tocado, antes de tudo, é uma
“máquina de escrever” que nada faz que disponibilizar cartas. A Internet
não é um bicho, é apenas um corredor de carta trocadas, bilhetes
repassados, nada além do que sempre foi feito quando se quer combinar
algo ou discutir algo, sem a mediação de “autoridades”. O fato do tempo
ter se tornado um tempo curto entre o falar e o responder, ou o mesmo
tempo, muda a dinâmica do movimento de protesto, mas não muda uma coisa:
há de se pensar no que será o protesto e decidir pela participação
segundo desejos políticos e segundo o grau de informação que se tem. O
tempo de pergunta e resposta, “sem mediações”, como Chauí diz, é o que
ela teme verdadeiramente. Ela gostaria de ter não só o tempo a seu
favor, mas também o espaço. Ela sabe falar a partir de uma mesa (ou
palanque) que, antes de tudo, lhe dê a autoridade que ela precisa para
falar. Ela adora falar dessa maneira, principalmente se a plateia, de
antemão, concorda com ela em tudo. Ela se sente bem em ser professora
antes de um partido que de uma escola.
O protesto, ao contrário do que ela
pensa, envolve responsabilidade de cada um, pois ali vai ocorrer, de
certo modo, algo que no passado chamávamos de “desobediência civil”, ou
quase isso. Esse tipo de protesto, assim organizado, não pode repetir o
passado, não pode levar o que participa a jogar nas costas da vanguarda a
responsabilidade de atitudes do protesto. Não é uma parada militar ou
um comício do PT ou PSDB. É um protesto horizontal, e ninguém está
alheio ali às responsabilidades, uma vez que, dependendo de como as
coisas evoluem, a consequência, que é o enfrentamento com a polícia, se
dá no mesmo momento. Aliás, é por isso que aqueles que pediam que o
Movimento do Passe Livre delatasse os que seriam os “vândalos”, estavam
não só moralmente errados, mas também errados na maneira de compreender o
movimento de protesto (como o caso da jornalista Patrícia Campos).
Não havia vanguarda e, portanto, não havia a “polícia interna” do
movimento, como ocorria nos comícios do PT. Nesses comícios, nos quais
Marilena Chauí se criou, havia o palanque que policiava os militantes,
de modo que não ocorresse qualquer dissidência comprometedora da imagem
petista. Sempre soubemos disso. Aliás, foi fugindo disso que os jovens
de hoje iniciaram o movimento de protesto longe do PT e contra o PT. A
Internet foi o meio que eles usaram para escapar do mando não só dos
conservadores, mas também e principalmente da Marilena Chauí e do PT.
Assim, as razões com que Marilena
trabalha, para explicar a “dimensão mágica” e o pensamento mágico que
estariam guiando os protestos, não são boas razões. É mais fácil
acreditar, pelo que ela escreveu, que ela nunca soube o que é o livro e,
por isso, não sabe o que são as mídias, e muito menos a Internet. Não
sabendo isso, também não sabe o que os jovens pensam. Sabe apenas que os
jovens não seguem mais o PT e, por isso, ela se põe assim, meio que
magoada por um protesto que mudou a agenda política do Brasil, e o fez
contra os ídolos de Marilena, que governam o país, ou seja, Lula, Dilma,
Sarney, Renan Calheiros etc.
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* Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo, escritor, cartunista e professor da UFRRJ
Fonte: http://ghiraldelli.pro.br/marilena-chaui-e-o-pensamento-magico-dos-jovens/
Imagem da Internet
Marilena tem razão. Os movimentos de rua de junho de 2013 foram mais fantasia inconsequente do que movimento para reais mudanças, As pessoas achavam que poderiam melhorar o país simplesmente saindo todas juntas, gritando todas juntas. Ora, havia rejeição a organismos intermediários da construção social (grupos e bandeiras eram atacados), rejeição à leitura ampla da realidade social (a grande sociedade economicamente "inferior" não compareceu às manifestações de junho, assim como as mudanças favoráveis ocorridas para essas camadas sociais ficaram fora de consideração).
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