domingo, 30 de junho de 2013

Marilena Chauí e o pensamento mágico dos jovens

Paulo Ghiraldelli Jr*
 
“Pensamento mágico” é um pensamento que antes “explica” que explica. Fala em termos de relações que desprezam causalidade e racionalidade, elementos chaves do pensamento racional. Desse modo, tudo pode se transformar em tudo, e se surgir nele algo do nada, não é alguma coisa de se estranhar. Acostumamos, na filosofia, a dizer que o pensamento mágico está para rapsodo, o cantador das poesias mitológicas, assim como o pensamento racional está para o filósofo, o pensador autêntico. É assim que, em geral, todos nós escolarizados entendemos o pensamento mágico.

Marilena Chauí inventou de dizer que há uma “dimensão mágica” engajando os jovens (e outros participantes) nas manifestações de junho de 2013, as manifestações que eu tenho chamado de “a revolução do indivíduo”. Por meio de um marxismo difuso, ela assim formula sua observação:

“[o protesto] assume gradativamente uma dimensão mágica, cuja origem se encontra na natureza do próprio instrumento tecnológico empregado, pois este opera magicamente, uma vez que os usuários são, exatamente, usuários e, portanto, não possuem o controle técnico e econômico do instrumento que usam – ou seja, deste ponto de vista, encontram-se na mesma situação que os receptores dos meios de comunicação de massa.

A dimensão é mágica porque, assim como basta apertar um botão para tudo aparecer, assim também se acredita que basta querer para fazer acontecer. Ora, além da ausência de controle real sobre o instrumento, a magia repõe um dos recursos mais profundos da sociedade de consumo difundida pelos meios de comunicação, qual seja, a ideia de satisfação imediata do desejo, sem qualquer mediação” (Teoria e Debate) (grifos meus)

Lendo este trecho fico com a impressão que há magia, sim, mas única e exclusivamente no modo com que Marilena Chauí pensa. Por que ela imagina que teríamos de ser proprietários da Internet, e não apenas usuários, para que a manifestação nossa, criada a partir de troca de informações na Internet, fosse válida? Por que ela imagina que, por sermos usuários, não conhecemos a tecnologia necessária, enquanto usuários, para poder utilizar a Internet na organização do movimento de protestos, organização esta que ela nega ter existido e nega que poderá existir?

Caso ela pense que pode utilizar o marxismo como ela está utilizando, ela erra feio. Marx jamais escreveu ou pensou assim. A dizer que o operário estava alienado em sua dimensão subjetiva porque estava objetivamente alienado dos meios de produção, Marx estava pensando no quanto o capitalismo como um todo podia criar uma metafísica ou, nos temos dele, uma ideologia, por meio das inversões que receberam o nome de fetichismo e reificação. Essas análises de Marx podem ser usadas pelo marxismo, mas não podem ser enfiadas em qualquer situação particular para dizer que as pessoas, uma vez não sendo donas das coisas com que operam, agirão acreditando em mágica ou participando de uma mágica. Isso é uma tolice.

Marilena Chauí não está com problemas só no entendimento da horizontalidade do movimento de protesto. Ela está com problemas cognitivos diante da tecnologia do mundo contemporâneo. No entanto, sociologicamente falando, o princípio dessa tecnologia não é tão diferente da tecnologia do livro.

Vejamos a tecnologia do livro funcionando. Vamos montar o quadro.

Marilena Chauí está em sua casa, e acabou de escrever um longo texto, que ela quer que chegue a um determinado público de modo a convencer aquele público a pensar e agir segundo o que ela quer. Feito isso, ele envia os manuscritos para uma editora, lugar em que há um empresário que vai produzir e veicular o livro dela para os leitores, aqueles que ela quer influenciar. Esse empresário, o Editor, vai publicar o livro se este antes de tudo lhe der dinheiro e prestígio. Dinheiro para ele e prestígio para a empresa, a editora. Ele vai ponderar sobre o conteúdo. Caso o conteúdo lhe dê dinheiro, mas em médio prazo der à sociedade subversão social, ele irá ponderar entre se vale a pena ganhar agora e perder depois. Caso possa apostar que não perderá, então publicará o livro. Marilena Chauí, como todos nós intelectuais, já incorporou esse mecanismo, que trabalha na nossa cabeça quase que imperceptivelmente, e sua escrita pode até sair radical, mas não o suficiente para não ser publicada. Desse modo, ela ganhará dinheiro, e também ganhará o empresário que, pesando os prós e contras, terminará por publicar. O livro chegará ao leitor e será uma peça com origem na “produção capitalista” como outra qualquer. Mas, pior, exercerá sobre o leitor, de certo modo, uma mágica. Será a mágica de lhe dizer verdades, pois o livro não terá consigo, em suas páginas, apenas a força de legitimidade da exposição racional, mas terá também a força da autoridade (ou quase um autoritarismo) de Chauí (com parte de sua autoridade vinda da instituição Universidade) e do Editor (com a autoridade do Dinheiro). E tudo isso cairá sobre o leitor sem que ele possa responder ou perguntar. Afinal, o Editor não publicará o livro do leitor descontente. Pode-se até desconfiar se haverá leitor descontente, após toda a máquina de propaganda da Universidade e da editora, capitalisticamente, começarem a funcionar.

Como se pode notar, eis aí a dimensão mágica que, para Marilena Chauí, é válida, pois lhe favorece. Agora, se a comunicação se dá de dupla mão, ela não participa. Ela não quer falar e ouvir. Ela quer só falar e mandar. Então, a Internet não serve para ela. Não tem o mesmo peso capitalista e autoritário do livro. A Internet exigiria de Marilena uma conversação com força racional que ela teme não ter, então ela não participa e, desse modo, condena. As uvas estão verdes, diz a raposa. Mas, na verdade, o que ocorre é paúra mesmo, medo atroz do debate horizontal, do qual ela nunca participou, pois está há anos no exercício autoritário do debate vertical. Vale aqui lembrar a avaliação de Sócrates a respeito da escrita, como está no Fedro, de Platão: o livro é burro, ele sempre responde à mesma coisa, seja lá qual forem as perguntas que possamos fazer. Marilena gosta do livro, odeia a Internet, a Internet a obrigaria à dialética, ao trabalho filosófico de “dar e pedir razões” no mesmo contexto temporal, e disso ela foge como o Diabo foge da Cruz.

Marilena Chauí acha a Internet “mágica”, no fundo, não pelos pressupostos marxistas que ela usa para analisar, aliás, erradamente, as mídias em geral. Ela pensa como pensa porque ela própria é uma pessoa que não consegue lidar com a tecnologia. Então, ela própria vê a máquina como mágica. Ela não vê a máquina editorial funcionando, desse modo não aplica a mesma coisa a uma tal máquina. O livro é natural, a Internet não – ela pensa assim porque não entendeu nem o livro e nem a Internet.
Outro erro fantástico da professora Chauí é ela acreditar que os participantes dos protestos, os usuários da Internet, apertam um botão e então acreditam que seus desejos estão satisfeitos. Quem ela pensa que são os jovens, bebês?

Ela não sabe que o botão tocado acionou apenas um aviso para o colega, de modo a marcar um lugar para o encontro do protesto. Ela não sabe que o botão tocado, antes de tudo, é uma “máquina de escrever” que nada faz que disponibilizar cartas. A Internet não é um bicho, é apenas um corredor de carta trocadas, bilhetes repassados, nada além do que sempre foi feito quando se quer combinar algo ou discutir algo, sem a mediação de “autoridades”. O fato do tempo ter se tornado um tempo curto entre o falar e o responder, ou o mesmo tempo, muda a dinâmica do movimento de protesto, mas não muda uma coisa: há de se pensar no que será o protesto e decidir pela participação segundo desejos políticos e segundo o grau de informação que se tem. O tempo de pergunta e resposta, “sem mediações”, como Chauí diz, é o que ela teme verdadeiramente. Ela gostaria de ter não só o tempo a seu favor, mas também o espaço. Ela sabe falar a partir de uma mesa (ou palanque) que, antes de tudo, lhe dê a autoridade que ela precisa para falar. Ela adora falar dessa maneira, principalmente se a plateia, de antemão, concorda com ela em tudo. Ela se sente bem em ser professora antes de um partido que de uma escola.

O protesto, ao contrário do que ela pensa, envolve responsabilidade de cada um, pois ali vai ocorrer, de certo modo, algo que no passado chamávamos de “desobediência civil”, ou quase isso. Esse tipo de protesto, assim organizado, não pode repetir o passado, não pode levar o que participa a jogar nas costas da vanguarda a responsabilidade de atitudes do protesto. Não é uma parada militar ou um comício do PT ou PSDB. É um protesto horizontal, e ninguém está alheio ali às responsabilidades, uma vez que, dependendo de como as coisas evoluem, a consequência, que é o enfrentamento com a polícia, se dá no mesmo momento. Aliás, é por isso que aqueles que pediam que o Movimento do Passe Livre delatasse os que seriam os “vândalos”, estavam não só moralmente errados, mas também errados na maneira de compreender o movimento de protesto (como o caso da jornalista Patrícia Campos). Não havia vanguarda e, portanto, não havia a “polícia interna” do movimento, como ocorria nos comícios do PT. Nesses comícios, nos quais Marilena Chauí se criou, havia o palanque que policiava os militantes, de modo que não ocorresse qualquer dissidência comprometedora da imagem petista. Sempre soubemos disso. Aliás, foi fugindo disso que os jovens de hoje iniciaram o movimento de protesto longe do PT e contra o PT. A Internet foi o meio que eles usaram para escapar do mando não só dos conservadores, mas também e principalmente da Marilena Chauí e do PT.

Assim, as razões com que Marilena trabalha, para explicar a “dimensão mágica” e o pensamento mágico que estariam guiando os protestos, não são boas razões. É mais fácil acreditar, pelo que ela escreveu, que ela nunca soube o que é o livro e, por isso, não sabe o que são as mídias, e muito menos a Internet. Não sabendo isso, também não sabe o que os jovens pensam. Sabe apenas que os jovens não seguem mais o PT e, por isso, ela se põe assim, meio que magoada por um protesto que mudou a agenda política do Brasil, e o fez contra os ídolos de Marilena, que governam o país, ou seja, Lula, Dilma, Sarney, Renan Calheiros etc.
--------------------------
* Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo, escritor, cartunista e professor da UFRRJ
Fonte:  http://ghiraldelli.pro.br/marilena-chaui-e-o-pensamento-magico-dos-jovens/
Imagem da Internet

Um comentário:

  1. Marilena tem razão. Os movimentos de rua de junho de 2013 foram mais fantasia inconsequente do que movimento para reais mudanças, As pessoas achavam que poderiam melhorar o país simplesmente saindo todas juntas, gritando todas juntas. Ora, havia rejeição a organismos intermediários da construção social (grupos e bandeiras eram atacados), rejeição à leitura ampla da realidade social (a grande sociedade economicamente "inferior" não compareceu às manifestações de junho, assim como as mudanças favoráveis ocorridas para essas camadas sociais ficaram fora de consideração).

    ResponderExcluir