Último texto de Teresa Urban.
"Bem, deu no que deu, não somos um país,
somos um monte de “eu”, cada um com seu cartaz,
seu facebook e nada que os ligue."
Ruth Bolognese recebeu este texto de Teresa Urban, (http://www.ihu.unisinos.br/noticias/521433-morre-aos-67-anos-a-jornalista-e-ambientalista-teresa-urban) o último que ela escreveu antes falecer anteontem à noite. É uma reflexão sobre os acontecimentos destes dias. Lúcida, afiada, procura mostrar à amiga o caráter do movimento que levou milhares às ruas.
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/521465-ninguem-mandou-voce-perguntar-ultimo-texto-teresa-urban
Eis o texto.
Olá Ruth,
estou sem falar há dez dias, não por perplexidade mas por ordens
médicas. O silêncio, neste barulho todo, me obrigou a pensar mais do que
agir e foi uma experiência muito nova para mim. Montar um
quebra-cabeças destes é difícil, amiga, porque a primeira coisa que
descobri é que nem mesmo falamos a mesma língua (hoje li em algum lugar
que não tem tecla SAP para isso).
Abrimos um fosso tão grande entre o
que chamamos de povo brasileiro e as elites (governo, políticos, ricos,
intelectuais, jornalistas, esquerdistas, nós) e agora estão em nossa
frente, serpenteando pelas ruas das cidades, anunciando sua existência.
Bom, quanto tempo faz que a gente não se pergunta como as pessoas se
sentem nas cidades massacrantes, nos ônibus entupidos, na falta de
respeito de motoristas com pedestres, de motociclistas com motoristas,
de professor com aluno, de aluno com professor, de jovem com velho, de
velho com jovem, de meninos de rua com gente de bem, de trabalhadores
endividados pelo consumo fácil, de falta de amor, de médicos gelados
como pedra, de gente entediada, de tráfico, de meninos mortos na
periferia, de prisões lotadas, de crimes impunes…longa lista.
Lembra, Ruth,
como foi o êxodo rural dos anos 70? Perderam-se as raízes. as cidades
viraram amontoados humanos de um nível crescente de hostilidade, mas a
gente vai levando. Vizinhos, comunidade, amigos, partido, Estado que
protege os mais fracos ??? bobajada, mano velho, vamos tocando, tem time
de futebol. Tenho pensado muito em algumas palavras: pertencimento e
desgarrados.
Bem, deu no que deu, não somos um país, somos um monte de “eu”, cada um com seu cartaz, seu facebook e nada que os ligue.
Pode ser que um monte de eu se sinta pertencendo a alguma coisa,
assim junto na rua… A crise é de representatividade? é, mas não tão
simples que uma reforma partidária resolva.
Lembrei muito de uma cena antiga, quando contestávamos a instalação da Renault
nos mananciais e alguém perguntou quem representava a empresa naquela
discussão. E um velhinho sem dentes, paletó de mangas curta que não
conseguiam esconder os rotos punhos da camisa, levantou o braço e disse:
eu represento a Renault.
Nunca esqueci disso porque não entendi qual a crença que levou aquele
homenzinho a fazer isso (ninguém mandou, ele estava muito sozinho ali),
mas acho que foi um momento de ousadia incrível.
Dizer eu me represento é mais ousado ainda e muito mais perigoso, Ruth.
Ninguém representa ninguém naquela multidão, talvez depois, na foto no
facebook, troquem suas representatividades. Chegamos a isso por
negligência e prepotência e agora é um trabalho danado de grande voltar a
pensar em coisas pequenas para fazer contato com os alienígenas. Quem
sabe aquele dedinho do ET de Spilberg tocando o dedo do menino ajude…
Agora, o que é mesmo ruim nesta história é o
que a brava imprensa brasileira fez: criou uma nova espécie, sem nenhum
estudo, nenhuma base científica, sem nenhuma pergunta: homo sapiens
vandalus lamentavilis. Ruth,que
vergonha tenho de ser jornalista. Quem são, afinal, aqueles meninos que
não temem a polícia, que devolvem as bombas, que chutam tudo com fúria,
que saem das lojas saqueadas com sacolas e somem na escuridão? Quem
são, quantos são, onde vivem, de onde surgiram? São brasileiros ou só
são brasileiros os que serpenteiam sem rumo?
São os dentes da fera, Ruth,
só os dentes. O resto, a gente não conhece. Enquanto continuarem
dividindo o país entre manifestantes e vândalos ou, como ontem na OTV,
uma repórter mais perdidinha dizia, protestantes e fanáticos, não vai
dar para entender o que de fato acontece.
Outro pior é a legitimação e o aplauso à repressão policial. Não sei se você viu, mas ontem havia uma galera na frente do Palácio Iguaçu
(pra Curitiba, bastante gente, umas 10 mil pessoas?) quietos, sem nada
que dizer, às vezes cantavam algo tipo “sou brasileiro com muito
orgulho” exigiam caras e cartazes para a câmara de TV, andavam de um
lado para o outro e só, só, só. Não sei porque estavam ali. Passaram
reto pela Câmara, pela Prefeitura, estavam ao lado da Assembléia
Legislativa mas pararam na frente do Palácio às escuras. Ninguém para
falar, nem por eles nem para eles nem com eles. Foi uma cena muito
surreal, que durou tempo, debaixo de chuva e frio.
De repente, do nada, o Palácio do Governo
começa a vomitar uma enfurecida tropa de choque que sai jogando bomba,
atirando bala de borracha sem mais. Joãozinho estava lá, Thiago estava lá, Dani, filha de Clovis,
estava lá. E mais uma galera de meninos que só estavam lá. Pelo tanto
de luz de celular, era pra mostrar depois no face. Só então, na correria
do depois, que os dentes surgiram na escuridão e começaram a morder a
propriedade, pública ou privada, não importava.
Bom, Rurh,
quando vi aquilo – polícia, cachorros, cavalos, bombas e os meninos
correndo em desespero, chutando e quebrando tudo -, depois de muito, mas
muito tempo na minha vida marvada, chorei.
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