Ivo Lesbaupin*
A conjuntura do momento parece se vincular
diretamente à preocupação do governo atual de continuar no poder,
ganhando as eleições presidenciais de 2014. O governo expressou, através
da Ministra Chefe da Casa Civil, Gleisi Hoffmann, o que pensava sobre
os povos indígenas: um empecilho ao "desenvolvimento".
A conjuntura política que estamos vivendo é muito
significativa. Mas começou há alguns meses e parece se vincular
diretamente à preocupação do governo atual de continuar no poder,
ganhando as eleições presidenciais de 2014. O debate eleitoral foi
lançado pela situação, com um ano de antecedência. Junto com ele, foi
desencadeado o esforço de ampliação das alianças: de um lado, concessões
cada vez maiores ao agronegócio - de tal modo que parece que o
agronegócio participa no governo; de outro lado, concessões ao setor de
religiosos fundamentalistas, para garantir os votos de suas bases. Daí a
oferta da presidência da Comissão de Direitos Humanos da Câmara a um
fundamentalista, os recuos relativos às questões ligadas aos direitos
sexuais e reprodutivos e à campanha contra a homofobia.
Povos indígenas - O governo
expressou, através da Ministra Chefe da Casa Civil, Gleisi Hoffmann, o
que pensava sobre os povos indígenas: um empecilho ao "desenvolvimento"
tal como eles o concebem, um empecilho a ser enquadrado ou afastado.
Para enfrentar os indígenas, baixaram um decreto que permite o uso da
Força Nacional. E, assim que os indígenas ocuparam o canteiro de obras
da usina Belo Monte, enviaram a tropa. Neste campo, a postura do governo
é uma repetição da postura da ditadura civil-militar de 1964.
A reação crescente de vários setores em defesa dos
direitos dos povos indígenas (e da Constituição de 1988) levou o governo
a um início de "recuo tático": financiou a vinda de 140 indígenas para
Brasília, para negociar com o Ministro da Secretaria Geral da
Presidência da República. O diálogo logo revelou o que de fato era: os
indígenas poderiam expressar o seu pensamento, mas o governo não
arredaria pé de sua decisão de construir a usina. Podem participar à
vontade, mas não podem decidir diferente do que o governo já decidiu - e
decidiu em comum acordo com os setores que o apoiam: empreiteiras,
empresas mineradoras, etc., e os partidos que o sustentam (o PMDB de
Sarney, etc.).
A Medida Provisória dos Portos -
numa atitude inusitada, o governo jogou todas as fichas na aprovação de
uma medida provisória em favor da privatização dos portos no Brasil (em
favor de certos setores privados). Foi a mais longa sessão da história
do parlamento nacional. E a presidente engajou-se pessoalmente para
obter a vitória, numa atitude muito semelhante à de FHC para aprovar a
emenda da reeleição. Poder-se-ia dizer que o Congresso virou "um balcão
de negócios", que valia tudo para conseguir o objetivo almejado.
Ambas as tomadas de posição - em relação aos povos
indígenas, semelhante à posição defendida pela ditadura e em relação à
privatização dos portos, que aproxima o governo atual do governo FHC -
significavam uma guinada mais à direita do que até então vinha
ocorrendo. O governo cedia aos interesses do agronegócio, de um lado, e
aos interesses privatistas, de outro.
O Movimento do Passe Livre - Os
movimentos de protesto contra o aumento das passagens urbanas vinham
ocorrendo em São Paulo - e, em menor escala, em algumas outras capitais -
num grau de mobilização restrito. A violência da repressão durante a
manifestação da quinta-feira, dia 13 de junho, provocou um mar de
reações de todos os lados. Não apenas no Brasil, mas em inúmeros outros
países, brasileiros e não-brasileiros protestaram e se solidarizaram com
os jovens do Brasil (de São Paulo). Não lembro de ter visto uma reação
internacional tão ampla a um acontecimento daqui.
As manifestações programadas para a segunda-feira,
dia 17, recolheram o resultado desta indignação. Foram para as ruas os
que eram contra o aumento de passagens, os que eram a favor da tarifa
zero, mas também um sem-número de pessoas indignadas com a repressão,
que queriam defender o direito democrático de protestar, cada qual com
suas reivindicações específicas, muito variadas: contra os gastos com a
Copa - a serviço dos interesses privados da FIFA -, por mais gastos em
Saúde e em Educação, contra a PEC 37 (Ministério Público) e várias
outras reivindicações.
O fato de haver, nestas manifestações, a presença
massiva de pessoas que, antes, não estavam nas ruas, é algo muito
positivo: pessoas antes passivas sentiram-se fortemente motivadas ao
ponto de saírem de sua vida habitual e irem às ruas protestar.
Este fato revela uma insatisfação antes contida que
agora vem à tona. Insatisfação com o custo de vida revelado no preço dos
transportes, no transporte insuficiente e de má qualidade, no preço dos
alimentos; mas também com o modo como a política vem se desenvolvendo
neste país, nos últimos anos. A crítica é à falta de representatividade
dos partidos políticos, que se parecem cada vez mais, na subserviência
ao Executivo, na aceitação da compra de votos, na negação de sua função
de legisladores e de fiscalizadores do Executivo e do Judiciário, na
ausência de fidelidade a seus programas - e, portanto, a seus
representados.
É cada vez mais difícil distinguir um partido de
outro, cada um se vende de acordo com as conveniências; é cada vez mais
difícil distinguir PT de PSDB nas políticas públicas: nem a
privatização, que era o símbolo da diferença, os separa mais. Em nome da
tal "governabilidade", o governo faz alianças de A a Z, desde Sarney e
Renan Calheiros até Collor e Maluf. 90% dos líderes partidários de
direita estão na base aliada do governo: como é que este governo vai
praticar políticas de esquerda? Como é que vai combater a corrupção se
estes seus aliados são tão importantes que o governo impede qualquer
tentativa de processo contra eles? Como é que vai defender direitos que
antes defendia se sua preocupação é garantir, a qualquer preço, o voto
de setores religiosos fundamentalistas?
Há uma insatisfação generalizada contra o método
autoritário de governar, que impõe políticas a serem seguidas, sem
poderem ser negociadas - a não ser com os grandes. As políticas são
determinadas de acordo com os interesses daqueles que financiam as
campanhas eleitorais e cujos interesses não podem ser contrariados. É
por isso que um parlamentar do PT é capaz de, publicamente, agradecer à
Senadora Kátia Abreu, líder do agronegócio, o empenho para que a MP dos
Portos fosse aprovada.
Na posição face aos acontecimentos, a grande mídia
mudou da água para o vinho, depois da repressão violenta que atingiu
também jornalistas. A grande mídia, obviamente, não tem interesse nesta
história das passagens: ela quer, como "partido da direita" que é,
pautar as manifestações. A Veja chega a sugerir os próximos
temas: a corrupção, a criminalidade. Isso faz parte do jogo político e
não se poderia esperar outra coisa. Mas os manifestantes recusam a
apropriação por parte de partidos políticos, sejam eles quais forem.
A diferença entre uma manifestação liderada por um
grupo organizado, por um partido político, e uma manifestação sem
propriamente lideranças reconhecidas por todos - embora puxadas pelo
Movimento do Passe Livre - é que é difícil controlar todos os grupos. A
grande maioria realizou manifestações pacíficas, mas alguns se
destacaram e realizaram atos violentos (geralmente não contra pessoas e,
sim, contra prédios que representam o poder legislativo ou executivo).
De algum modo, o alvo destes atos, contra o poder representativo, tem um
significado: "vocês não nos representam", "vocês não têm nos
representado" - e foi para isso que nós os elegemos, é para isso que nós
os sustentamos, é para o governo e o parlamento servir às nossas
necessidades, aos nossos direitos que nós pagamos os impostos.
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* Ivo Lespaupin é sociólogo, mebro da Direção Executiva da Abong e co-autor do livro Horizontes ainda que seja noite (Teologia da Libertação e Educação Popular v. 3)
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