Uma das características da mobilização social que se espalhou por
praças de diversas cidades brasileiras é ter o apartidarismo como um de
seus princípios, como destaca o Movimento Passe Livre, articulador de
protestos que pressionaram pela redução das tarifas de ônibus. Para
Gabriel Cohn, professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da USP, essa desqualificação dos partidos revela a
incapacidade das legendas atuais de servirem como instância
intermediária apta a converter demandas pontuais em pontos programáticos
ou de governo. "Uma das minhas angústias é que não estamos tendo
mecanismos propriamente políticos, sobretudo institucionais", afirma.
Valor: O Movimento Passe Livre, um dos embriões
das manifestações, se define como horizontal, autônomo, independente e
apartidário. O que esses adjetivos dizem sobre a organização política na
contemporaneidade?
Gabriel Cohn A palavra-chave é apartidário. Isso é
um dado que vem se acentuando e, dadas as condições políticas no plano
global, é cada dia mais preocupante. Não é verdade que você tenha
alternativa, no plano da federação, à presença dos partidos. Você pode e
deve ter, no interior da sociedade, ene movimentos independentes. Isso é
saudável. Mas salientar o apartidário revela o aprofundamento da
incapacidade dos partidos de servirem como instância intermediária apta a
converter demandas pontuais em pontos programáticos ou de governo.
Valor: Há meses o ex-presidente Fernando
Henrique citou o Occupy Wall Street, os indignados na Espanha e os
conflitos do mundo islâmico como exemplos de manifestações que
mostrariam o potencial das redes sociais para dizer "não", mas faltaria à
rede o potencial para dizer "e então o quê". Como o senhor vê o uso das
redes sociais na organização de protestos públicos?
Cohn: A citação é interessante porque essa
comunicação em rede permite ventilar e, eventualmente, aumentar a
temperatura desse ou daquele desconforto. Mas não há intermediação. De
repente isso explode, e você vai para a rua. Não havendo as instâncias
que são formadoras de debate e reflexão você acaba tendo reações
espasmódicas. No nosso caso não é uma reação contra uma opressão.
Valor: A avenida Paulista, em São Paulo, tem
sido palco do Movimento Passe Livre, de marchas pela liberação da
maconha, de passeata gay, entre muitas outras, que, mesmo não sendo
organizados em torno de partidos, marcam posição sobre demandas sociais
em uma espécie de micropolítica. Como o senhor avalia essa dinâmica?
Cohn: Uma das minhas angústias é que não estamos
tendo mecanismos propriamente políticos, sobretudo institucionais. Não
temos mecanismos de articulação ampla, crescente e reflexiva daquilo que
atualmente é qualidade de microssegmentos da sociedade. Não há como
organicamente trabalhar isso. Precisaria haver partidos vigorosos
capazes de responder. Nem o PT nem o PSDB estão qualificados para isso.
Se não há instâncias intermediárias capazes de dar organicidade para ene
microexpressões de reivindicações, você vai criando uma espécie de
fervilhamento constante, que pode se manifestar na rua, mas continua
sendo aquilo que, quando se manifesta, ganha caráter mais espasmódico.
Não há a transição entre os diversos micros para um macro.
Cohn: Se não estancarmos esse sangramento
democrático, que é a ideia de que o político não presta, teremos
problemas. Se você não tem partidos organizados, com militantes saindo
às ruas, não estanca o sangramento. Isso promove uma seleção perversa.
Uma das coisas que liquidaram com a velha União Soviética, deixando de
lado os horrores, é que um partido único, que na origem era de devotados
e militantes, foi sendo, aos poucos, tomado por todo tipo de
oportunistas. O que aconteceu? Houve uma seleção perversa: nenhuma
pessoa decente se apresentava para entrar naquele negócio. Há uma
desconstrução interna, que é ajudada por processos de seleção perversa:
tanto você fala que os políticos não prestam, e uma parcela do Congresso
[brasileiro] realmente não está à altura de grandes padrões éticos, que
você começa a assustar aqueles que têm atitudes e convicções
democráticas. Isso os desestimula a entrar no jogo político. Você
destrói por dentro as instituições básicas e cria essa forma de
organização política e social que me assusta: miríade de pequenos
interesses que não se articulam, com a desqualificação de instâncias do
tipo partido. O resultado é uma atuação mais espasmódica do que
democraticamente construtiva nos grandes processos.
Valor: Há indicações de que alguns desses movimentos venham a se tornar orgânicos?
Cohn: Gostaria que houvesse os dois lados. Ao lado
dos ene movimentos não partidários, falta a militância partidária para
cobrar qualquer governo, incluindo o do seu partido, sobre as grandes
questões não satisfatoriamente resolvidas. Eu me sentiria bem se visse a
militância do PT cobrando Haddad nas ruas, para não falar da "Pacwoman"
Dilma. Mas há inibição, porque supostamente o menor gesto pode "levar
água" para a oposição. E, com isso, deixam-se as boas causas para a
oposição.
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