Renato Tapajós*
Occupy
Wall Street: Infelizmente, no Brasil as manifestações não evoluíram para o
discurso anticapitalista
Foto:
Andrew Burton/Reuters
O
próprio movimento amadurece, decanta as reivindicações e passa a dialogar com
as instituições.
O grande risco que permanece é a possibilidade de a direita
organizada tentar se assenhorear do movimento.
Franjas propensas à violência
gratuita e ao vandalismo que podem servir de matéria prima para o fascismo.
Cabe à esquerda compreender o movimento e buscar sua integração aos objetivos
de transformação do país
Um
mal-estar ronda o planeta. E um de seu principais sintomas é o grande número de
manifestações populares, principalmente de jovens que, ano após ano, ocupam as
ruas e praças de diferentes cidades do mundo, geralmente com objetivos difusos
e sem direções centralizadas. Sem querer recuar muito no tempo e sem
preocupação de estabelecer uma sequência de datas, podemos registrar as
manifestações nos países árabes, na Grécia, na Espanha, na Itália, no Chile,
nos Estados Unidos. Em cada um desses lugares as manifestações assumem a feição
local, temáticas locais, mas refletem sempre certas características gerais,
como objetivos pouco claros e ausência de lideranças definidas. Elas refletem
algo que permeia o mundo inteiro e gera insatisfação em todos, sobretudo nos
jovens.
Há
pouco mais de vinte anos o assim chamado socialismo real derreteu. O
capitalismo decretou sua vitória, sua dominação hegemônica (houve quem falasse
no fim da história). E o capitalismo assumiu novas formas, geralmente resumidas
pelos rótulos de neoliberalismo e globalização. Os novos métodos de gestão e a
facilidade das comunicações geraram desemprego no primeiro mundo e subemprego
em condições desumanas de trabalho no restante. As mudanças no chão da fábrica
(eliminação da linha de montagem, uso de robôs) produzem aumentos de
produtividade e redução da mão de obra, mudando as regras do jogo no mercado de
trabalho, nas formas de luta dos trabalhadores, no comportamento dos
sindicatos, produzindo uma juventude operária que se distancia das visões de
mundo da geração anterior. Mudanças globais no campo (a hegemonia do agronegócio
dentro da lógica neoliberal) empurram mais jovens para as periferias urbanas,
gerando grandes zonas de exclusão, de mal-estar e de violência.
Esse
capitalismo se pautou pelo consumo desenfreado, pelo culto ao individualismo,
pela decretação da morte do coletivo. Com a publicidade e o marketing
construindo um novo patamar de consumo – customizado, individualizado,
exclusivo –, os jovens do final do século 20 e do começo do século 21 se
voltaram sobre si mesmos, colocando o sucesso pessoal como meta única. Essa
ausência de cidadania, essa morte do coletivo, então, gerou um profundo
mal-estar. Tanto naqueles que conseguiam esse tipo de sucesso e caiam no vazio,
mas mais intensamente naqueles que ficavam de fora, considerados perdedores,
diminuídos como indivíduos e sem dispor de mecanismos coletivos, de cidadania.
Durante
algum tempo foi apenas uma certa vanguarda da juventude que identificou e
reagiu a este mal-estar. As manifestações contra as reuniões econômicas dos
grandes, dos países dominantes (Davos, Atlanta, Seattle) já reuniam grupos
significativos de manifestantes, muitos assumindo uma feição violenta e
chegando rapidamente às palavras de ordem anti-capitalistas. O Fórum Social
Mundial foi também uma tentativa de dar voz aos opositores da ordem hegemônica,
de alguma forma mais organizado e mais pacífico. É notável perceber desde então
a presença de tendências antipartidárias, de visões transformadoras dos mais
variados tipos (ambientais, de gênero, antirracistas etc.) e a ausência de uma
percepção mais profunda da luta de classes. Já aí está presente essa reação
difusa ao mal-estar global, que nega lideranças tradicionais ou, até mesmo, a
própria necessidade de organização e lideranças.
A
crise que começa em 2008, varrendo os EUA e a Europa e gerando reflexos no
resto do mundo, intensifica esse mal-estar ao ponto de ruptura. Os problemas
locais, causados ou não pela crise, servem de gatilhos para desencadear as
manifestações. A internet e as redes sociais permitem uma mobilização mais
rápida e, sobretudo, mais impessoal. Por causa dela, muitas dessas
manifestações se mantiveram difusas, sem objetivos claros e sem lideranças
conhecidas.
O
Brasil chegou atrasado a essa ruptura. Provavelmente porque os governos do PT
não permitiram a eclosão mais abrupta dos efeitos da crise. Enquanto ela
permanecia uma marolinha, a insatisfação genérica se manteve contida. As
políticas sociais do governo obtiveram significativo sucesso, integrando no
mercado de consumo grandes parcelas da população. O projeto econômico manteve
sua dupla face: de um lado gerou empregos e ganhos reais de renda, mas, de
outro, manteve a hegemonia neoliberal, sem desafiar nem reformar os postulados
da exploração de classe em nosso país. Conseguiu aumentar a renda da imensa
maioria da população sem diminuir significativamente a desigualdade. E, de
resto, incluiu milhões de trabalhadores no mercado sem alterar em profundidade
aquilo que é o dever do Estado: educação, transporte, saúde. Os novos
consumidores continuaram excluídos da cidadania, dos acessos que a ela são
inerentes.
É
claro que durante bastante tempo, quase uma década, a política dos governos do
PT amenizaram a “contaminação” da população do país pelo intenso mal-estar que
já varria o mundo. Mas nada dura para sempre. Um aceno de inflação, um
resultado medíocre do crescimento econômico, a intensificação da campanha
contra o governo por parte da grande mídia e aí está: o gatilho do aumento da
passagem do ônibus levou os jovens para a rua.
É
preciso destacar com veemência o papel que nisso desempenhou o comportamento da
grande mídia nacional. Nos últimos meses de 2012 e em todo esse começo de 2013,
os jornais, revistas e televisões bradaram continuamente contra tudo que se
referia ao governo: falta de infraestrutura, estradas ruins, filas de
caminhões, hospitais lotados e detonados, educação ineficiente, corrupção,
violência. Para quem não tivesse acompanhado as mudanças importantíssimas das
últimas décadas, parecia que o caos tinha se estabelecido por aqui desde que o
PT conquistou o governo. E é esse tipo de informação que apareceu como verdade
para os jovens, nascidos no final dos anos 1980, que não viveram nada do que
houve antes e eram crianças durante os anos 1990. Para eles, tudo está ruim: o
governo, todos os partidos, a própria ideia de partido, o Legislativo. Isso
coube perfeitamente na sensação de mal-estar que já existia.
Os
jovens foram para a rua. E, de repente, cabia tudo nos protestos – desde as
legítimas reivindicações da cidadania até as que ecoam os bordões da mídia. A repressão
inicial ao movimento só serviu para fazê-lo crescer. A nossa polícia ainda
reflete na sua organização, na sua ideologia, nos seus atos, a doutrina de
segurança nacional, que sustentou a ditadura de 1964. Mas, sem a polícia, as
manifestações cresceram, o que demonstra a profundidade do mal-estar sentido
pelos jovens brasileiros. Na verdade, o que é, infelizmente, notável nas
manifestações brasileiras é que elas não evoluíram para o discurso claramente
anticapitalista que alimentou as de vários países da Europa e o “Occupy Wall
Street” em Nova York.
O
grande aspecto positivo das manifestações no Brasil é a volta dos jovens para a
rua. Nesse processo novas lideranças se fortalecem e passam a compreender
melhor sua responsabilidade. O próprio movimento amadurece, decantando as
reivindicações e as tendências no sentido de encontrar uma voz própria, que
possa dialogar com os partidos e com as instituições. O grande risco que
permanece é a possibilidade dos conservadores, da direita organizada tentar empolgar
a direção do movimento, se assenhorear dele ou usá-lo para seus fins. Sempre há
franjas propensas à violência gratuita e ao vandalismo que podem servir de
matéria prima para o fascismo. Cabe, portanto, à esquerda compreender o
movimento e buscar sua integração aos objetivos de transformação do país.
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Renato Tapajós é escritor e cineasta, autor de Em Câmara Lenta
Renato Tapajós é escritor e cineasta, autor de Em Câmara Lenta
Fonte :
http://www.teoriaedebate.org.br/materias/nacional/um-certo-mal-estar?page=full#sthash.a0ovn3pr.dpuf
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