João Pereira Coutinho*
Se escolas e editoras querem dar à pornografia estatuto intelectual, não passo de um lamentável dinossauro
A atriz Sylvia Kristel morreu em outubro passado. Senti a notícia como uma perda pessoal. E nostálgica.
Lembro-me bem: teria uns 12 ou 13 anos quando a conheci. Moça simpática.
Foi na casa de um colega de turma que, por razões nunca suficientemente
explicadas, conseguira cópias em VHS dos filmes "Emmanuelle".
Todas as sextas à tarde havia uma peregrinação à casa do cavalheiro. E
ele, qual um Grande Gatsby pré-adolescente, recebia os convidados no
portão e depois cobrava ingressos à pequenada. Com o dinheiro do lanche,
era possível assistir ao filme e, por gentileza do anfitrião, beber
ainda um copo (de limonada). No final, os cinéfilos abandonavam a sala e
caminhavam rápido na mais profunda clandestinidade. Rumo a casa.
Assim foi durante semanas: enquanto os pais imaginavam as crianças em
estudos demorados, as crianças dedicavam-se a outro tipo de aulas. Até o
dia em que um delator resolveu contar o esquema à diretora da escola
depois de ter sido barrado na entrada daquele clube privado. Os pais
foram avisados. Houve castigos para todos os gostos e feitios --e eu,
com as orelhas a arder, despedi-me de Sylvia Kristel com um beijo
imaginário.
Claro que, olhando para trás, os filminhos de "Emmanuelle" eram quase
exemplos líricos de castidade. Sobretudo quando comparados com a
pornografia que abunda na internet e que tem provocado discussão séria
na Grã-Bretanha.
Não será hora de ter uma profissional da indústria a ministrar aulas de
educação sexual nas escolas? Aulas teóricas, entenda-se, não práticas. A
sugestão foi feita por Mark Slater, 59, responsável por um colégio de
elite em Cambridge.
Diz o prof. Slater ao "Sunday Telegraph" que as crianças estão cada vez
mais expostas a cenas violentas e, pormenor fundamental, irreais. Uma
professora de educação sexual com conhecimento de causa poderia explicar
a natureza fantasiosa das cenas, preparando os jovens para vidas de
maior respeito mútuo --e, acrescento eu, sem lesões físicas
desnecessárias.
O prof. Slater não está sozinho nessa batalha. A editora Routledge, que
em tempos mais bárbaros editava Karl Popper ou Friedrich Hayek,
prepara-se também para lançar a primeira revista científica sobre
estudos pornográficos. "Porn Studies", eis o título. Objetivo?
Estudar o fenômeno da pornografia "sob todos os ângulos", uma ambição
que já rendeu polêmica entre a comunidade científica, e não
necessariamente pelas razões mais literais. Conta o jornal "Observer"
que vários estudiosos da matéria criticam a revista por adotar um tom
neutro sobre o assunto.
Pornografia é coisa séria. Ela é responsável pela degradação das
mulheres, pelo comportamento violento dos homens e, atendendo ao
funcionamento hormonal da espécie, talvez pelo aquecimento global.
Aliás, por falar em aquecimento global, os críticos da revista comparam o
conselho científico da dita aos "negacionistas climáticos" que não
concordam com o sr. Al Gore sobre o destino dos glaciares. A polêmica
promete continuar.
Não tenciono contribuir para ela. Se as melhores escolas e editoras
entendem que é sua função conceder à pornografia estatuto intelectual
respeitável, eu não passo de um lamentável dinossauro. Que, logicamente,
nasceu no tempo errado.
No distante século 20, eu e os meus amigos éramos uns incorrigíveis
devassos. Hoje, no século 21, teria sido possível evitar todos os
castigos. E sustentar, com cara séria e erudita, que aquelas tardes
passadas com a sra. Sylvia Kristel eram visitas de campo --ou, melhor
ainda, deveres de casa.
Imagino mesmo os nossos pais, cobertos de orgulho, comentando uns com os
outros o amor dos filhos pelo estudo e os dias inteiros passados no
quarto.
P.S.: Leitores, eu amo vocês. Depois do artigo "O colunista apodrece",
da semana passada, recebi centenas de e-mails com votos de melhoras e
alguns conselhos sábios para não apodrecer precocemente. Prometo seguir
alguns, embora confesse que a opção vegetariana ainda não está no meu
cardápio. A situação não é tão desesperada. De resto, uma palavra em
especial para os médicos que partiram de vários sintomas --pedra no rim,
queda de dente, dores musculares etc.-- para chegarem a diagnósticos
vários, alguns deles contraditórios. Na qualidade de hipocondríaco, o
meu muito obrigado.
------------------* Colunista
Fonte: Folha on line, 18/06/2013
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