terça-feira, 25 de junho de 2013

A pós-Lolita

Luiz Felipe Pondé*
A sensualidade pode ser mortal. Em tempos de vida higiênica como o tempo em que vivemos, talvez, em algum momento, a sensualidade venha a ser mesmo posta fora da lei. 

Sim, a sensualidade pode ser mortal, basta ler "Lolita", de Vladimir Nabokov. Hoje, o livro seria proibido, mas, claro, em nome das boas intenções. Agora acreditamos que inventamos uma nova forma de censura (antes a censura tinha uma motivação diferente, creem os semiletrados): "A censura em nome do bem". 

O novo filme do diretor coreano Park Chan-wook, com Mia Wasikowska (no papel de Índia, uma Lolita que completa 18 anos) e Nicole Kidman (sua atormentada mãe), é uma pérola de estetização do lado sombrio do ser humano. 

Mas, não se trata de uma estética suja (até o sangue é de um vermelho encantador), por isso a sofisticação nele nos lembra que mesmo que não sejamos seres "do bem", ainda somos seres belos. 

Na filosofia, abordagens como essa são chamadas de "estetização da moral": a estética seria mais essencial do que a ética. Nietzsche é comumente acusado desta forma sofisticada de pecado. 

Acima eu falava da beleza do vermelho sangue no filme. Aliás, o sangue na narrativa acompanha a iniciação de nossa heroína e poderia muito bem ser o sangue de sua primeira menstruação escorrendo pelas pernas ou da perda de sua virgindade manchando o lençol. 

Em alguns momentos, lembramos dos bons momentos de David Lynch na sua série cult de TV dos anos 80, "Twin Peaks". A saia xadrez da colegial mortal de "Twin Peaks" é trocada pelo vestido "de menina" da estranha Índia, a filha pós-Lolita de Kidman no filme de Park Chan-wook. 

Às vezes, esquecemos que a sensualidade feminina pode simplesmente brotar do chão, como uma força esmagadora da natureza. 

"Segredos de Sangue" discute o eterno dilema do que em nós é herdado e do que em nós é "cultivado", ou, dito de outra forma, do que em nós seria passível de ser transformado ou criado pela educação ou pelo meio a nossa volta. Em inglês, o dilema "nature x nurture". 

No filme, os "segredos" do sangue de Índia (que não vou contar, pode ficar tranquilo) são o que nela seria herdado. E assim, uma forma de destino do qual ela não escapará. 

Sou daquele tipo de pessoa que acredita que temperamento é destino. Vejo isso todo dia em sala de aula. Mas, para muitos dos meus colegas, dizer isso seria ir contra "nosso mercado", a educação, infelizmente umas das áreas mais devastadas por bobagens pseudocientíficas e pseudofilosóficas no início deste século 21. 

O filme se abre com a morte inesperada do pai de Índia, "seu grande amor". Ela detesta a mãe. Não gosta de ser tocada e aprendeu com o pai as delícias da caça. No momento do enterro do pai (morto num estranho acidente de carro), surge seu desconhecido tio Charlie, irmão mais novo de seu pai. O filme narra as aventuras de Índia descobrindo sua sexualidade e muito mais. 

Mas sua sexualidade, "herdada" de alguma forma pelo tronco paterno, é a "sexualidade de Freud", não a sexualidade que hoje escorre pelas paredes do mundo, essa cadeia em céu aberto (Kafka ficaria espantado como as coisas pioraram de sua época para cá...). A sexualidade em voga hoje é uma sexualidade que pode ser posta a serviço da "boa política". A "biopolítica da libertação" nos deixará todos brochas. 

O que é a "sexualidade de Freud"? Sim, devemos cuidar para não esquecermos o Freud enterrado em conceitos pseudofreudianos como "pulsão política". 

O homem freudiano é uma pedra no sapato dos reformadores contemporâneos, e, nesse sentido, Freud terá que ser "esquecido" mesmo por aqueles que se dizem freudianos, mas que não suportam o que Freud nos ensinou: que a sexualidade é um abismo. Em uns, mais do que nos outros. 

Como dizia o psicanalista francês Michel de Certeau, falando de mística, "um lugar para se perder".
O "homem freudiano" só civiliza às custas de muita dor. E não há do outro lado uma civilização curada de sua raiz sombria, como querem os freudianos das luzes. 

Claro, nem todos somos Índias ou defloramos Índias. Mas ela continua bela. 
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*  Luiz Felipe Pondé, pernambucano, filósofo, escritor e ensaísta, doutor pela USP, pós-doutorado em epistemologia pela Universidade de Tel Aviv, professor da PUC-SP e da Faap, discute temas como comportamento contemporâneo, religião, niilismo, ciência. Autor de vários títulos, entre eles, "Contra um mundo melhor" (Ed. LeYa). Escreve às segundas na versão impressa de "Ilustrada".
Fonte: Folha on line, 24/06/2013
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