Luiz Felipe Pondé*
A sensualidade pode ser mortal. Em tempos de vida higiênica como o tempo
em que vivemos, talvez, em algum momento, a sensualidade venha a ser
mesmo posta fora da lei.
Sim, a sensualidade pode ser mortal, basta ler "Lolita", de Vladimir
Nabokov. Hoje, o livro seria proibido, mas, claro, em nome das boas
intenções. Agora acreditamos que inventamos uma nova forma de censura
(antes a censura tinha uma motivação diferente, creem os semiletrados):
"A censura em nome do bem".
O novo filme do diretor coreano Park Chan-wook, com Mia Wasikowska (no
papel de Índia, uma Lolita que completa 18 anos) e Nicole Kidman (sua
atormentada mãe), é uma pérola de estetização do lado sombrio do ser
humano.
Mas, não se trata de uma estética suja (até o sangue é de um vermelho
encantador), por isso a sofisticação nele nos lembra que mesmo que não
sejamos seres "do bem", ainda somos seres belos.
Na filosofia, abordagens como essa são chamadas de "estetização da
moral": a estética seria mais essencial do que a ética. Nietzsche é
comumente acusado desta forma sofisticada de pecado.
Acima eu falava da beleza do vermelho sangue no filme. Aliás, o sangue
na narrativa acompanha a iniciação de nossa heroína e poderia muito bem
ser o sangue de sua primeira menstruação escorrendo pelas pernas ou da
perda de sua virgindade manchando o lençol.
Em alguns momentos, lembramos dos bons momentos de David Lynch na sua
série cult de TV dos anos 80, "Twin Peaks". A saia xadrez da colegial
mortal de "Twin Peaks" é trocada pelo vestido "de menina" da estranha
Índia, a filha pós-Lolita de Kidman no filme de Park Chan-wook.
Às vezes, esquecemos que a sensualidade feminina pode simplesmente brotar do chão, como uma força esmagadora da natureza.
"Segredos de Sangue" discute o eterno dilema do que em nós é herdado e
do que em nós é "cultivado", ou, dito de outra forma, do que em nós
seria passível de ser transformado ou criado pela educação ou pelo meio a
nossa volta. Em inglês, o dilema "nature x nurture".
No filme, os "segredos" do sangue de Índia (que não vou contar, pode
ficar tranquilo) são o que nela seria herdado. E assim, uma forma de
destino do qual ela não escapará.
Sou daquele tipo de pessoa que acredita que temperamento é destino. Vejo
isso todo dia em sala de aula. Mas, para muitos dos meus colegas, dizer
isso seria ir contra "nosso mercado", a educação, infelizmente umas das
áreas mais devastadas por bobagens pseudocientíficas e
pseudofilosóficas no início deste século 21.
O filme se abre com a morte inesperada do pai de Índia, "seu grande
amor". Ela detesta a mãe. Não gosta de ser tocada e aprendeu com o pai
as delícias da caça. No momento do enterro do pai (morto num estranho
acidente de carro), surge seu desconhecido tio Charlie, irmão mais novo
de seu pai. O filme narra as aventuras de Índia descobrindo sua
sexualidade e muito mais.
Mas sua sexualidade, "herdada" de alguma forma pelo tronco paterno, é a
"sexualidade de Freud", não a sexualidade que hoje escorre pelas paredes
do mundo, essa cadeia em céu aberto (Kafka ficaria espantado como as
coisas pioraram de sua época para cá...). A sexualidade em voga hoje é
uma sexualidade que pode ser posta a serviço da "boa política". A
"biopolítica da libertação" nos deixará todos brochas.
O que é a "sexualidade de Freud"? Sim, devemos cuidar para não
esquecermos o Freud enterrado em conceitos pseudofreudianos como "pulsão
política".
O homem freudiano é uma pedra no sapato dos reformadores contemporâneos,
e, nesse sentido, Freud terá que ser "esquecido" mesmo por aqueles que
se dizem freudianos, mas que não suportam o que Freud nos ensinou: que a
sexualidade é um abismo. Em uns, mais do que nos outros.
Como dizia o psicanalista francês Michel de Certeau, falando de mística, "um lugar para se perder".
O "homem freudiano" só civiliza às custas de muita dor. E não há do
outro lado uma civilização curada de sua raiz sombria, como querem os
freudianos das luzes.
Claro, nem todos somos Índias ou defloramos Índias. Mas ela continua bela.
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* Luiz Felipe Pondé, pernambucano, filósofo, escritor e ensaísta,
doutor pela USP, pós-doutorado em epistemologia pela Universidade de Tel
Aviv, professor da PUC-SP e da Faap, discute temas como comportamento
contemporâneo, religião, niilismo, ciência. Autor de vários títulos,
entre eles, "Contra um mundo melhor" (Ed. LeYa). Escreve às segundas na
versão impressa de "Ilustrada".
Fonte: Folha on line, 24/06/2013
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