João Pereira Coutinho*
É fácil aceitar a desigualdade, a corrupção e a insegurança quando não existem termos de comparação
1. Raramente escrevo sobre o Brasil no Brasil. Questão de cortesia. Sou
convidado do país e um convidado não critica os anfitriões. Exceto
quando os anfitriões deixam de ser assunto doméstico e viram fenômeno
internacional.
2. Ironia. Quinze dias atrás gravei um podcast para esta Folha no
qual dizia: as grandes rebeliões da história começam quase sempre por
episódios anedóticos. A minha atenção estava na Turquia e na ambição de
Erdogan em arrasar com um parque em Istambul para construir um shopping.
Deu no que deu.
Quando debitava estas sábias linhas, nem reparei que São Paulo marchava contra aumentos nos transportes. Deu no que deu.
3. Historicamente, o melhor exemplo de um episódio anedótico que
precipitou uma revolução encontra-se nos Estados Unidos. No século 18,
os colonos americanos não desejavam "criar" um país. Queriam, mais
modestamente, não pagar impostos à metrópole britânica, uma vez que não
estavam representados no Parlamento de Londres ("no taxation without
representation"). Foi a intransigência do rei inglês que mudou a
história moderna.
4. Dilma parece ter alguma intuição histórica (ou será apenas bom
senso?) ao não ter subido a parada da repressão. Sobretudo quando se
confrontou com as consequências desastrosas das primeiras investidas
policiais. Um gesto inteligente que distingue o Brasil do autoritarismo
turco.
5. Dilma discursa ao país. Promete escutar todo mundo, investir mais em
educação, importar médicos etc. Mas o que pensam os brasileiros quando a
presidente nada diz sobre o "pibinho pequenininho", a inflação que não
desce, a queda do investimento (sobretudo estrangeiro), a perda de
competitividade"¦ [continua].
6. Portugal construiu dez estádios "padrão Fifa" para a Eurocopa de
2004. Sete anos depois o país estava falido. A Grécia cometeu iguais
loucuras para as Olimpíadas do mesmo ano. Teve a honra de falir
primeiro. Lição? Grandes acontecimentos desportivos nem sempre dão o
retorno esperado.
7. Comparações entre o Brasil e a Europa não funcionam? Duvido. Começo
pela economia: o desastre português não se deveu apenas aos dez
fatídicos estádios, que na sua maioria hoje apodrecem ao sol.
Começou com a pior combinação econômica possível: juros baixos (com o
euro), endividamento explosivo (Estado, empresas, famílias) e, golpe de
misericórdia, crescimento econômico medíocre (uma década perdida abaixo
de 1%). Soa familiar?
8. Na crise europeia, existe um bloqueio político evidente: as
populações não confiam nos governos, mas também não confiam nas
oposições. Assim é na Grécia, em Portugal "" e, claro, na Itália, que
quase elegeu um comediante (Beppe Grillo, não Berlusconi). E no Brasil?
Suspeito que exista o mesmo bloqueio. O PT, tradicionalmente a voz de
protesto do sistema, é hoje governo. Donde, quem é a voz de protesto?
Quem não acredita no governo, normalmente acredita na alternativa ao
governo. Donde, onde está a alternativa?
9. Escrevo um diário desde os 16 anos. Procurei páginas passadas das
minhas viagens pelo Brasil. Reli-as. Pergunta recorrente: como é
possível às elites conviverem tranquilamente com a pobreza em volta?
Para certos espíritos, essa pergunta não é própria da "direita". Erro
crasso. Não há nada que um conservador mais tema do que situações
potencialmente revolucionárias. E a melhor forma de as evitar é seguir o
velho conselho de Edmund Burke: para que o nosso país seja amado é
também preciso que ele seja amável.
10. Revoluções. Regresso aos Estados Unidos. A guerra da independência
não gerou apenas um país. Uma das consequências da guerra foi a ruína
financeira da França, que apoiou os colonos. Essa ruína seria uma das
causas da Revolução de 1789.
Mas existe outro legado revolucionário que os estudiosos tendem a
esquecer: os intelectuais e os soldados gauleses que participaram na
guerra viram no exemplo americano a medida da sua frustração caseira.
Por isso, pergunto: quantos daqueles milhares de brasileiros que tomaram
pacificamente as ruas não estudaram, trabalharam ou simplesmente se
informaram sobre o mundo exterior?
É fácil aceitar a desigualdade, a corrupção e a insegurança quando não
existem termos de comparação. Uma classe média mais fluente e afluente
começa a fazer comparações. Brindo a isso.
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* Jornalista português. Colunista da Folha.
Fonte: Folha on line, 25/06/2013
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