Antonio Delfim Netto*
O movimento das ruas é uma daquelas "emergências" que levam a refletir
sobre a qualidade da organização social em que vivemos. A história
mostra o seguinte:
1) Que a utilização dos "mercados" para organizar a produção é resultado
de um mecanismo evolutivo. Ele foi gerado por uma seleção quase natural
entre os muitos sistemas que os homens vêm experimentando desde que
saímos da África há 150 mil anos, para combinar uma relativa eficiência
na conquista de sua subsistência material com um aumento paulatino da
liberdade para viver sua vida;
2) Que, deixado a si mesmo, ele amplia as desigualdades e tende a gerar flutuações cíclicas no nível de emprego;
3) Que um Estado forte, constitucionalmente limitado e poder incumbente
escolhido pelo sufrágio universal, é fundamental para regulá-lo e
civilizá-lo;
4) Que a crença ingênua na eficiência do mercado financeiro, essencial
ao desenvolvimento produtivo, leva à submissão deste ao primeiro e, com
tempo suficiente, ao controle do próprio Estado, como vimos em 1929 e em
2008, o que exige mudanças no paradigma.
O mecanismo de seleção a que nos referimos acima continua a trabalhar,
como mostra a surpresa do "movimento das ruas", na direção do aumento da
liberdade do homem para viver a sua humanidade, com a redução do
trabalho necessário à sua subsistência material e dando-lhe segurança
por meio do aperfeiçoamento da organização social, que busca combinar
três objetivos não plenamente conciliáveis: maior liberdade individual,
maior igualdade de oportunidade e maior eficiência produtiva. É
importante lembrar que esses três valores estão implícitos na
Constituição de 1988, que reforçou as instituições para realizá-los.
A história sugere que o processo de aproximações sucessivas do
"socialismo fabiano", por meio do jogo interminável entre a "urna" e o
"mercado", é, talvez, o caminho assintótico para produzi-los. As
alternativas propostas de sua substituição voluntarista e apressada por
cérebros peregrinos lotaram de tragédias o século 20.
A sociedade mundial está inserida numa profunda revolução industrial
apoiada em novas tecnologias e no aumento dramático de transmissão e
acumulação de informação. Ela vai produzir uma redução do trabalho
material e um aumento imenso da liberdade individual, no mesmo sentido
da seleção "quase" natural que nos levou até aqui.
No Brasil que está ficando mais velho, as implicações desse novo passo
civilizador têm que ser antecipadas com um dramático aumento da
"qualidade" de nossa educação. O movimento das ruas está mostrando que
esta é essencial para salvar a economia e, principalmente, a democracia.
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*Antonio Delfim Netto, ex-ministro da Fazenda (governos Costa e
Silva e Médici), é economista e ex-deputado federal. Professor
catedrático na Universidade de São Paulo. Escreve às quartas-feiras na
versão impressa da Página A2.
Fonte: Folha on line, 26/06/2013
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