Urs von Balthasar*
O amor cristão não é a palavra – nem sequer a
última palavra – do mundo sobre si mesmo, mas a palavra definitiva de
Deus sobre si próprio e, portanto, também sobre o mundo. Na cruz, a
palavra do mundo é, antes de mais, atravessada por uma palavra de todo
diferente, que o mundo de nenhum modo quer ouvir. O mundo quer viver e
ressuscitar antes de morrer, o amor de Cristo, porém, quer morrer para
ressuscitar além da morte, na morte, na forma de Deus. Esta
ressurreição na morte não se deixa anexar, utilizar, levar a reboque,
pela vida intramundana, efémera. Mas a vida do mundo, que quer viver
antes de morrer, não encontra em si nenhuma esperança (excepto em
construções sem esperança) de eternizar o temporal.
A esta vontade de viver, peculiar ao mundo, a
palavra de Deus em Jesus Cristo traz a única esperança, imprevisível,
para lá de todas as possíveis construções do mundo. Para a vontade do
mundo, é uma solução “desesperada” porque lhe sugere a morte, mas, ao
mesmo tempo, patenteia a vontade do mundo como “desesperada”, porque
ela não pode prevalecer contra a morte. Só à vontade desesperada de
viver é que a proposta divina surge como uma solução de desespero, em
si ela é puro amor que, na morte, se revela mais forte do que a morte,
portanto já triunfou daquilo que a vontade do mundo em vão combate.
O mundo decide-se por neutralizar entre si os
dois desesperos, descobre que a palavra de Deus a seu respeito não lhe é
exterior, mas o realiza interiormente, isto é, o conduz para onde ele
essencialmente deve ir, embora de mau grado: “Em verdade, em verdade te
digo: quando eras mais novo, tu mesmo atavas o cinto e ias
(peripateîn) para onde querias; mas, quando fores velho, estenderás as
mãos e outro te há-de atar o cinto e levar para onde não queres.” (Jo
21, 18). Será este outro a morte natural ou a cruz? Ou será que, por
detrás da morte – como condição de sua possibilidade – está a cruz? E
que toda a filosofia do ser finito, que embate constantemente no muro
da morte e deve, por fim, decidir-se a estar pronto para a morte, opta
todavia, a bem ou a mal, pela cruz? Tal não pode, decerto, querer dizer
que a cruz seja uma categoria do ser finito, oculta, difícil de
descobrir, mas, uma vez descoberta, decifrando tudo, uma espécie de lei
dialéctica do “eterno morre e devém”, uma “sexta-feira santa
especulativa”, graças à qual a razão humana seria capacitada para
administrar ela própria a palavra de Deus, de inserir a morte como
factor interno na vida e, de acordo com a tese, antítese e síntese, se
crucificar sem cessar a si mesma para, como a fénix, ressuscitar
continuamente do túmulo.
Se a cruz se tornar uma lei manuseável, mesmo que
só segundo o ritmo elástico de uma lei vital, recair-se-á então na Lei
(no sentido paulino), e o amor absoluto é ultrapassado pela
especulação omnipotente, ou seja: a liberdade soberana de Deus (que
poderia também ser de outro modo) é julgada pelo tribunal da razão
humana – e, assim, tal como realmente é, condenada.
Este caminho é impraticável; mas isso de nenhum
modo obriga a adoptar outro caminho, segundo o qual o “saber” seria
livremente abandonado pelo cristianismo à investigação profana, como
ciência e filosofia, ao passo que o encontro com a palavra de Deus
ficaria reservado para a “simples fé” (pessoal, incapaz de
cientificamente se justificar). Não só existe um autêntico conhecimento
de fé (a gnosis [conhecimento] de que o Novo Testamento fala
constantemente e com tanta insistência), mas há também, e por isso
mesmo, uma reflexão sobre o ser finito à luz do conhecimento de fé. Uma
reflexão sobre o carácter de “imagem e de semelhança” do ser criado em
relação ao arquétipo divino, e portanto uma descoberta da marca de
água do amor divino em todas as naturezas particulares e em todo o
universo natural. Mas este sinal inscrito naturalmente só se ilumina
quando aparece o sinal do amor absoluto: à luz da cruz, o ser do mundo
recebe um sentido, as formas e as vias incoativas do amor que, de outro
modo, correm o risco de se encaminhar para um beco sem saída, podem
ser referidas ao seu verdadeiro fundamento transcendente. Mas quando
esta relação (de natureza e de graça) é destruída, no sentido da
dialéctica mencionada que opõe o “saber” e a “fé”, o ser finito é
necessariamente colocado sob o signo do “saber” sempre superior a tudo o
mais, e assim as potências imanentes de amor no mundo são subjugadas e
abafadas pela ciência, pela técnica e pela cibernética. Nasce então um
mundo sem mulheres, sem filhos, sem respeito pela forma de pobreza e
de humildade do amor, um mundo onde tudo é visto em função do lucro e
da aquisição de poder, onde tudo o que é desinteressado e gratuito é
desprezado, perseguido e extinto, e onde até à arte se impõe a máscara e
o rosto da técnica.
Mas se o criado se encarar com os olhos do amor, é
então compreendido contra todas as verosimilhanças que parecem apontar
para o vazio de amor no mundo. Compreendido na sua definitiva razão de
ser: não só da sua essência que se pode clarificar de algum modo
graças às numerosas relações significativas entre as naturezas
particulares, mas também da sua existência em geral, para a qual,
aliás, nenhuma filosofia consegue encontrar um fundamento suficiente.
Porque é que realmente existe algo em vez de nada? – a questão surge
tanto na afirmação, como na negação, da existência de um Ser absoluto.
Se este Ser não existe, que razão pode haver para
que existam, no seio do nada, estas coisas finitas e efémeras que nem
por adição, nem por evolução, alguma vez podem desembocar no Absoluto?
Mas se o Absoluto existir e se bastar a si como absoluto, então ainda é
quase mais incompreensível porque é que, fora dele, deveria haver algo
de diferente. Só uma filosofia do amor autónomo e livre pode
justificar a nossa existência, mas não sem interpretar ao mesmo tempo a
essência do ser finito em função do amor. Em função do amor, e não, em
última instância, da consciência ou do espírito, do saber ou do poder,
do prazer ou da utilidade, mas de tudo isso considerado apenas como
modos e pressupostos em vista do único acto que tudo perfaz, e que
brilha esplendorosamente no sinal de Deus.
E, para lá da existência e da essência,
ilumina-se a constituição do ser em geral, na medida em que este último
só nos aparece como “não se mantendo em si mesmo”, na exteriorização
de si mesmo para entrar na finitude concreta – o que permite aos seres
finitos recebê-lo e compreendê-lo tal como é em si mesmo, como aquele
que não procura preservar-se a si mesmo e, por isso, são por ele
iniciados no amor que sem cessar se oferta: a consciência de si, a
posse de si mesmo e do ser, só progridem na medida em que o ser em si e
por si faz eclodir as suas barreiras e se abre à comunicação, à troca, à
simpatia humana e cósmica. Todos os valores do mundo são postos na sua
verdadeira luz só pelo sinal de Deus, porque agora se ultrapassam
também todos os limites do amor, todas as objecções contra ele, e ainda
todas as profundezas misteriosas do amor que se imola são preservadas e
subtraídas ao domínio do saber redutor.
É sobretudo o homem que se torna verdadeiramente
ele próprio no apelo que lhe é dirigido: criado para este fim, chega
inteiramente a si próprio como aquele que responde. Ele é a linguagem
de que Deus se serve para lhe falar: como é que, neste diálogo, não
haveria de se entender a si? Emergindo à luz de Deus, entra na
claridade sem pôr em perigo a sua natureza (de modo espiritualista),
nem a sua qualidade de criatura (pelo orgulho). Só na salvação
concedida por Deus é que o homem se torna plenamente são. Graças ao
sinal de Deus que se rebaixa encarnando e se aniquila na morte e no
vazio de Deus, é que se pode esclarecer porque é que Deus, já como
criador do mundo, saiu de si e desceu abaixo de si: correspondia assim
ao seu ser e à sua essência absolutos revelar-se, na sua liberdade
abissal e por nada instigada, como o amor insondável, que não é o bem
absoluto para lá do ser, mas a profundidade e a altura, o comprimento e
a largura do próprio Ser.
Eis porque justamente o primado eterno da palavra
divina de amor se oculta numa impotência, que outorga o primado ao
amado: o amor de Deus por este filho que é o mundo desperta de tal modo
o amor no coração deste que o amor de Deus se pode também tornar
filho, um filho que nasceu de sua mãe e que por ela foi despertado para
o amor divino-humano. A palavra de Deus suscita a resposta do homem,
tornando-se ela própria o amor que responde e que deixa ao mundo a
iniciativa. Círculo indestrutível, imaginado e realizado só por Deus,
que permanece sem cessar acima do mundo e, por isso mesmo, reside no
coração do mundo. No coração se situa o centro; eis porque o coração
divino-humano é objecto de veneração, e a cabeça só quando está coberta
de sangue e de chagas: como revelação do coração.
Assim se atenua a controvérsia em torno da
questão seguinte: consiste a bem-aventurança eterna na visão ou no
amor? De facto, ela só pode consistir na “visão” amorosa do amor, pois,
que outra coisa se deveria ver em Deus, e como é que o amor poderia
ser contemplado, a não ser na comunhão de amor?"
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* Hans Urs von Balthasar foi um sacerdote, teólogo e escritor suíço. É considerado um dos mais importantes teólogos do século XX.
In Só o amor é digno de fé, ed. Assírio & Alvim
25.06.13
In Só o amor é digno de fé, ed. Assírio & Alvim
25.06.13
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