quarta-feira, 26 de junho de 2013

Só o amor é digno de fé

Urs von Balthasar*
Capa

O amor cristão não é a palavra – nem sequer a última palavra – do mundo sobre si mesmo, mas a palavra definitiva de Deus sobre si próprio e, portanto, também sobre o mundo. Na cruz, a palavra do mundo é, antes de mais, atravessada por uma palavra de todo diferente, que o mundo de nenhum modo quer ouvir. O mundo quer viver e ressuscitar antes de morrer, o amor de Cristo, porém, quer morrer para ressuscitar além da morte, na morte, na forma de Deus. Esta ressurreição na morte não se deixa anexar, utilizar, levar a reboque, pela vida intramundana, efémera. Mas a vida do mundo, que quer viver antes de morrer, não encontra em si nenhuma esperança (excepto em construções sem esperança) de eternizar o temporal. 

A esta vontade de viver, peculiar ao mundo, a palavra de Deus em Jesus Cristo traz a única esperança, imprevisível, para lá de todas as possíveis construções do mundo. Para a vontade do mundo, é uma solução “desesperada” porque lhe sugere a morte, mas, ao mesmo tempo, patenteia a vontade do mundo como “desesperada”, porque ela não pode prevalecer contra a morte. Só à vontade desesperada de viver é que a proposta divina surge como uma solução de desespero, em si ela é puro amor que, na morte, se revela mais forte do que a morte, portanto já triunfou daquilo que a vontade do mundo em vão combate. 

O mundo decide-se por neutralizar entre si os dois desesperos, descobre que a palavra de Deus a seu respeito não lhe é exterior, mas o realiza interiormente, isto é, o conduz para onde ele essencialmente deve ir, embora de mau grado: “Em verdade, em verdade te digo: quando eras mais novo, tu mesmo atavas o cinto e ias (peripateîn) para onde querias; mas, quando fores velho, estenderás as mãos e outro te há-de atar o cinto e levar para onde não queres.” (Jo 21, 18). Será este outro a morte natural ou a cruz? Ou será que, por detrás da morte – como condição de sua possibilidade – está a cruz? E que toda a filosofia do ser finito, que embate constantemente no muro da morte e deve, por fim, decidir-se a estar pronto para a morte, opta todavia, a bem ou a mal, pela cruz? Tal não pode, decerto, querer dizer que a cruz seja uma categoria do ser finito, oculta, difícil de descobrir, mas, uma vez descoberta, decifrando tudo, uma espécie de lei dialéctica do “eterno morre e devém”, uma “sexta-feira santa especulativa”, graças à qual a razão humana seria capacitada para administrar ela própria a palavra de Deus, de inserir a morte como factor interno na vida e, de acordo com a tese, antítese e síntese, se crucificar sem cessar a si mesma para, como a fénix, ressuscitar continuamente do túmulo. 

Se a cruz se tornar uma lei manuseável, mesmo que só segundo o ritmo elástico de uma lei vital, recair-se-á então na Lei (no sentido paulino), e o amor absoluto é ultrapassado pela especulação omnipotente, ou seja: a liberdade soberana de Deus (que poderia também ser de outro modo) é julgada pelo tribunal da razão humana – e, assim, tal como realmente é, condenada.

Este caminho é impraticável; mas isso de nenhum modo obriga a adoptar outro caminho, segundo o qual o “saber” seria livremente abandonado pelo cristianismo à investigação profana, como ciência e filosofia, ao passo que o encontro com a palavra de Deus ficaria reservado para a “simples fé” (pessoal, incapaz de cientificamente se justificar). Não só existe um autêntico conhecimento de fé (a gnosis [conhecimento] de que o Novo Testamento fala constantemente e com tanta insistência), mas há também, e por isso mesmo, uma reflexão sobre o ser finito à luz do conhecimento de fé. Uma reflexão sobre o carácter de “imagem e de semelhança” do ser criado em relação ao arquétipo divino, e portanto uma descoberta da marca de água do amor divino em todas as naturezas particulares e em todo o universo natural. Mas este sinal inscrito naturalmente só se ilumina quando aparece o sinal do amor absoluto: à luz da cruz, o ser do mundo recebe um sentido, as formas e as vias incoativas do amor que, de outro modo, correm o risco de se encaminhar para um beco sem saída, podem ser referidas ao seu verdadeiro fundamento transcendente. Mas quando esta relação (de natureza e de graça) é destruída, no sentido da dialéctica mencionada que opõe o “saber” e a “fé”, o ser finito é necessariamente colocado sob o signo do “saber” sempre superior a tudo o mais, e assim as potências imanentes de amor no mundo são subjugadas e abafadas pela ciência, pela técnica e pela cibernética. Nasce então um mundo sem mulheres, sem filhos, sem respeito pela forma de pobreza e de humildade do amor, um mundo onde tudo é visto em função do lucro e da aquisição de poder, onde tudo o que é desinteressado e gratuito é desprezado, perseguido e extinto, e onde até à arte se impõe a máscara e o rosto da técnica.

Mas se o criado se encarar com os olhos do amor, é então compreendido contra todas as verosimilhanças que parecem apontar para o vazio de amor no mundo. Compreendido na sua definitiva razão de ser: não só da sua essência que se pode clarificar de algum modo graças às numerosas relações significativas entre as naturezas particulares, mas também da sua existência em geral, para a qual, aliás, nenhuma filosofia consegue encontrar um fundamento suficiente. Porque é que realmente existe algo em vez de nada? – a questão surge tanto na afirmação, como na negação, da existência de um Ser absoluto. 

Se este Ser não existe, que razão pode haver para que existam, no seio do nada, estas coisas finitas e efémeras que nem por adição, nem por evolução, alguma vez podem desembocar no Absoluto? Mas se o Absoluto existir e se bastar a si como absoluto, então ainda é quase mais incompreensível porque é que, fora dele, deveria haver algo de diferente. Só uma filosofia do amor autónomo e livre pode justificar a nossa existência, mas não sem interpretar ao mesmo tempo a essência do ser finito em função do amor. Em função do amor, e não, em última instância, da consciência ou do espírito, do saber ou do poder, do prazer ou da utilidade, mas de tudo isso considerado apenas como modos e pressupostos em vista do único acto que tudo perfaz, e que brilha esplendorosamente no sinal de Deus. 

E, para lá da existência e da essência, ilumina-se a constituição do ser em geral, na medida em que este último só nos aparece como “não se mantendo em si mesmo”, na exteriorização de si mesmo para entrar na finitude concreta – o que permite aos seres finitos recebê-lo e compreendê-lo tal como é em si mesmo, como aquele que não procura preservar-se a si mesmo e, por isso, são por ele iniciados no amor que sem cessar se oferta: a consciência de si, a posse de si mesmo e do ser, só progridem na medida em que o ser em si e por si faz eclodir as suas barreiras e se abre à comunicação, à troca, à simpatia humana e cósmica. Todos os valores do mundo são postos na sua verdadeira luz só pelo sinal de Deus, porque agora se ultrapassam também todos os limites do amor, todas as objecções contra ele, e ainda todas as profundezas misteriosas do amor que se imola são preservadas e subtraídas ao domínio do saber redutor. 

É sobretudo o homem que se torna verdadeiramente ele próprio no apelo que lhe é dirigido: criado para este fim, chega inteiramente a si próprio como aquele que responde. Ele é a linguagem de que Deus se serve para lhe falar: como é que, neste diálogo, não haveria de se entender a si? Emergindo à luz de Deus, entra na claridade sem pôr em perigo a sua natureza (de modo espiritualista), nem a sua qualidade de criatura (pelo orgulho). Só na salvação concedida por Deus é que o homem se torna plenamente são. Graças ao sinal de Deus que se rebaixa encarnando e se aniquila na morte e no vazio de Deus, é que se pode esclarecer porque é que Deus, já como criador do mundo, saiu de si e desceu abaixo de si: correspondia assim ao seu ser e à sua essência absolutos revelar-se, na sua liberdade abissal e por nada instigada, como o amor insondável, que não é o bem absoluto para lá do ser, mas a profundidade e a altura, o comprimento e a largura do próprio Ser.

Eis porque justamente o primado eterno da palavra divina de amor se oculta numa impotência, que outorga o primado ao amado: o amor de Deus por este filho que é o mundo desperta de tal modo o amor no coração deste que o amor de Deus se pode também tornar filho, um filho que nasceu de sua mãe e que por ela foi despertado para o amor divino-humano. A palavra de Deus suscita a resposta do homem, tornando-se ela própria o amor que responde e que deixa ao mundo a iniciativa. Círculo indestrutível, imaginado e realizado só por Deus, que permanece sem cessar acima do mundo e, por isso mesmo, reside no coração do mundo. No coração se situa o centro; eis porque o coração divino-humano é objecto de veneração, e a cabeça só quando está coberta de sangue e de chagas: como revelação do coração.

Assim se atenua a controvérsia em torno da questão seguinte: consiste a bem-aventurança eterna na visão ou no amor? De facto, ela só pode consistir na “visão” amorosa do amor, pois, que outra coisa se deveria ver em Deus, e como é que o amor poderia ser contemplado, a não ser na comunhão de amor?"
 --------------------
* Hans Urs von Balthasar foi um sacerdote, teólogo e escritor suíço. É considerado um dos mais importantes teólogos do século XX.
In Só o amor é digno de fé, ed. Assírio & Alvim
25.06.13

Nenhum comentário:

Postar um comentário