Luiz Felipe Pondé*
Eckhart pagou um preço alto por sua ousadia; o mundo não mudou muito desde então
Mestre Eckhart, alemão morto em 1328, foi um grande filósofo, místico e herege, condenado em 1329 pela Inquisição.
Na época, a norma era pregar e ensinar em latim, apesar de as pessoas
comuns não entenderem latim. Eckhart pregou e ensinou em alemão, e essa
foi uma das acusações contra ele, porque, segundo os inquisidores, as
pessoas comuns não entendiam sutilezas teológicas ou filosóficas.
Essas ideias sofisticadas versavam sobre a experiência direta de Deus,
mais conhecida na literatura especializada como mística, além de ele
defender uma forma de teologia que entendia o homem como "parte de
Deus".
Antes professor de grande sucesso de teologia sacra na Sorbonne, na
cátedra de teologia para professores de fora do reino de França (Tomás
de Aquino ocupara a mesma cátedra antes), mais tarde veio a ser
transferido para uma atividade mais "paroquial" e menos intelectual em
Estrasburgo.
O intelectual Eckhart foi transferido para Estrasburgo a fim de cuidar
das almas ("cura das almas") dos grupos de espirituais, homens e
mulheres, chamados "bégards" e "béguines", que viviam ao redor da
cidade.
Seu sucesso nas pregações serviu como argumento para seus invejosos
inimigos políticos o acusarem de herege, acusação que acabou por
destruir sua carreira e sua vida (ele morreu no ostracismo, quando era a
maior promessa da ordem dominicana depois de Tomás de Aquino) --e
condenou sua obra a séculos de desconhecimento pela filosofia e pela
teologia.
Eckhart era um mestre do intelecto, um "mestre da vida", como o
caracterizou o medievalista Alain de Libera em seu clássico "Pensar na
Idade Média". Nesse livro, De Libera descreve o perigo que era pensar
fora dos muros da academia (ser um "mestre da vida") e como isso gerava
perseguição pela Inquisição.
Eckhart pagou um preço alto por sua ousadia; teria sido queimado se não tivesse morrido antes.
Nessa sua atividade com o "povo", Eckhart ficou conhecido em especial
pela sua aproximação com as mulheres espirituais, as "béguines". Existe
até um romance, que recomendo para quem lê francês, de Jean Bédard, que
se chama "Maître Eckhart" (mestre Eckhart) e narra o lendário
relacionamento que ele teria tido com uma dessas mulheres, Kaltrei, que
muito provavelmente foi queimada.
Um método comum da Inquisição era retirar argumentos escritos ou falados
pelo réu do contexto original a fim "fazê-lo dizer o que ele não
disse".
E qual era a "psicologia" de um inquisidor? Normalmente bem formado, ele
se via como alguém chamado a assegurar a pureza dogmática do
cristianismo e a impedir a contaminação dos costumes por ideias
indesejáveis.
Essas ideias se difundiam rapidamente pelo "povo" (mesmo antes da
"maior" invenção do século, o Facebook...), e, por isso, era importante
cuidar para que elas não fossem postas em circulação. Como ele se via
como um defensor da pureza da verdade e dos costumes no mundo (logo, do
"bem"), julgava-se autorizado a perseguir, calar e queimar quem
discordasse dele.
O mundo não mudou muito desde então.
P. S.: Outras inquisições.
Na semana passada, nesta coluna, critiquei os
excessos de certos grupos que querem se meter nos brinquedos das
crianças e nas posições sexuais dos casais. Aparentemente, um link
enviado por um leitor, que constituiu uma referência entre várias, cita
uma entrevista que nunca existiu.
Mas o festival de curtas sobre diversidade sexual narrado na coluna nada
tem a ver com essa "armadilha da internet": aconteceu em São Paulo, e
eu estava presente. Nesse, sim, criticava-se a "posição de quatro" como
sendo machista. Portanto, a crítica independe da falsa entrevista.
A condenação do sexo oral por motivos ideológicos também é fato.
Basta lembrarmos a campanha de anos atrás fora do país, quando uma foto
de publicidade antitabagista mostrava uma mulher de joelhos, diante de
um homem, com um cigarro na boca, condenando as duas formas de
submissão: o sexo oral e o cigarro.
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* Filósofo. Escritor. Prof. Universitário.
Fonte: Folha on line, 17/06/2013
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