Quando um homem chamado Jorge se apresentou ao mundo
como "Francisco", muitíssima gente pareceu esperançada com aquela
escolha onomástica. Um milénio antes, um homem chamado Giovanni
tinha-se chamado "Francesco", talvez por amor às coisas francesas. E a
sua mensagem ainda ecoa entre crentes e não-crentes, de tal modo que há
três meses parecia que éramos todos franciscanos.
É conhecida a tese segunda a qual a substituição das
crenças "mágicas" pela ciência constituiu um "desencantamento do
mundo". Podemos, então, considerar a inesgotável popularidade do
franciscanismo como um "encantamento do mundo", espanto infantil
perante coisas recém-criadas ou recém-descobertas. É esse um dos
segredos de Francisco de Assis, e poucos o entenderam tão bem como
outro católico jubiloso, Gilbert Keith Chesterton, que em 1923 publicou
uma pequena biografia, "St Francis of Assisi", recentemente traduzida
em português [edição Alêtheia]. Chesterton explica que Francisco
«'antecipou as características mais liberais e compreensivas do mundo
moderno: o amor à natureza, o amor aos animais, a compaixão social, a
noção dos perigos sociais que resultam da prosperidade e mesmo da
propriedade». Uma forma de cristianismo que convoca muitos não-cristãos,
agora como outrora.
Comecemos pela natureza, questão essencial e mal
compreendida. Francisco viveu toda a vida segundo uma "teoria da
gratidão". Tanto que se celebrizou como poeta de cânticos de louvor e
agradecimento, cânticos das crtiaturas, aspecto que muitos confundem
com "panteísmo". Chesterton desmistifica essa ideia: Francisco achava
que o paganismo tratava a natureza de forma antinatural, e que era
preciso "sobrenaturalizar" a natureza, resgatando-a. Por isso, quando
elogia "a criação", isso significa tanto "as coisas criadas" como "o
acto criador", e o próprio "ente criador". É provável que algumas
pessoas tropecem neste equívoco, mas quem pode dizer que se trata
efectivamente de um equívoco? «Deus viu que tudo era bom», é o que vem
no Génesis.
Quanto à compaixão, tratava-se de uma virtude mas
também de um traço de personalidade. Francisco era decerto
voluntarista, impetuoso, abrupto, seguia os impulsos de cada instante,
com fé e sem grandes angústias. Era um homem prático, mas não era um
"pragmático": Chesterton diz mesmo que ele não seguia o "praticável",
ou seja, o que é fácil, mas o exigente: «Era tão prático que não
conseguia ser prudente.» O homem de Assis acreditava que somos todos
iguais, fraternidade que é teológica e antropológica, antes de ser
política. O ideal de "irmandade" que Francisco praticou nasceu de
encontros com pedintes, com leprosos, com outros-eus, irmãos que ele
abordava com uma igualdade não-sentimental, feita de cortesia, de
simplicidade, num gesto que, tantos séculos depois, ainda nos toca.
Por último, mas não em último, Francisco amava o mundo
através do desapego às coisas do mundo, como se isso fosse a própria
definição de liberdade. Filho frívolo de um abastado comerciante de
tecidos, entrou em choque com o pai e despojou-se de todos os bens.
Andava vestido como uma túnica castanha atada com uma corda, jejuava ou
passava fome, dependia da mendicância, quer dizer, da generosidade dos
estranhos. Não fez apenas voto de pobreza, contestou igualmente a
noção de propriedade, ou antes, de posse. Escreve Chesterton: «Há nele
uma suave mofa da própria ideia de posse; uma espécie de esperança de
desarmar o inimigo por via da generosidade; uma espécie de necessidade
bem-humorada de espantar o mundo com atitudes inesperadas; uma espécie
de alegria de levar uma convicção entusiasta aos seus lógicos.»
Francisco tem também outras dimensões. Existem muitas
histórias e fantasias, muitas colecções de episódios, de tal modo a
figura incendiou a imaginação medieval. Mas bastavam o amor à natureza,
a compaixão e o desapego para que ele tivesse sido visto como uma
espécie de lunático encantador. Um asceta rigoroso mas eufórico que
levou os votos monásticos a um extremo comovente. Francisco era como os
estilistas, cristãos bizantinos que viviam em sacrifício no cimo de
pilares; a diferença é que ele ficava cá em baixo, com os outros, como
um poverello, um jogral de Deus. Esse ascetismo alegre tornou-o popular como poucos santos fora,. Um santo estranho mas acessível.
E não esqueçamos que Francisco era também um místico, a
quem são atribuídos estigmas, visões, milagres. Contudo, não era um
daqueles homens que Chesterton diz que se fazem místicos porque são
«excessivamente cépticos para serem materialistas». Ele vivia na fé
total e completa, numa mística amorosa, trovadoresca, idêntica à do
amor cortês do seu tempo, um amor quase abstracto, mas concreto à força
da desmesura. Dante descreveu-o assim: «Mas por que eu não pareça
assaz escuso, / Francesco e a Pobreza por amantes / entendas ora em meu
falar difuso. / Sua concórdia e seus ledos semblantes, / amor e
maravilha e doce esguardo / de santos pensamentos são constantes»
[versão de Vasco Graça Moura].
Confesso que sou bastante mais agostiniano do que
franciscano; mas estive uma vez em Assis, nos lugares onde Francisco
viveu, e lembro-me de que aquelas colinas da Úmbria eram habitadas por
uma paz como nunca ouvi antes ou depois. Percebi agora que muito mais
gente também a escutou.
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