JOSÉ DE SOUZA MARTINS*
Propor uma Constituinte neste momento é propor um golpe
contra a Constituição, que é boa, abrangente e inovadora. O povo não foi
às ruas pedir um golpe de Estado. Foi à rua pedir o cumprimento da lei.
Convocar um plebiscito para votar as políticas a serem adotadas em
relação aos problemas levantados agora pelas multidões pode ser um sinal
de fraqueza e insegurança. O plebiscito já foi feito, nas ruas.
O que está acontecendo nestes dias não tem dimensão partidária, a não
ser por implicação. Desenrola-se no plano da indignação moral acumulada
em anos de abusos contra o interesse público, desdém pelas carências
populares e pouco caso pela inteligência da população em obter,
processar e compreender a informação cada vez mais acessível a todos. No
plano moral, os manifestantes antepuseram a nação aos partidos. O
Brasil foi às ruas exigir do governo um projeto de nação e não um
projeto de classe social; e políticas para todos, não para facções.
Cartazes, palavras de ordem, monumentos e edifícios visados, símbolos
atingidos, mostram que o Brasil das ruas exige que a política se
sujeite à moral e aos bons costumes; que os valores sociais e éticos
sejam antepostos aos interesses antissociais da economia escusa e do
poder corrupto. O povo foi às ruas para dizer ao governo e à sociedade o
que deve vir antes e o que deve vir depois, que a educação, a saúde, os
direitos sociais, a vida e o bem-estar de todos, são mais importantes
que o futebol monumental, das despesas bilionárias, do espetáculo para
inglês ver, mais importantes do que as obras faraônicas e inacabáveis.
Tudo indica que a era das esperanças messiânicas e do silêncio cúmplice
esteja chegando ao fim.
Os manifestantes questionaram a política de pão e circo. Fizeram a
crítica ruidosa da política de coalizão e cumplicidade, do Estado
fragmentado e loteado, dos favorecimentos, do toma lá dá cá, do poder
pelo poder. A rua disse aos poderosos que o poder é do povo, que o
mandato é representação política e não privilégio de casta, é temporário
e precário.
Eleição, no Brasil, tem sido uma renúncia, a vontade política do povo
sequestrada pelos eleitos e pelos partidos, que raramente representam o
eleitor de vontades e carências, representando muito mais os grupos de
interesse que o instrumentaliza. O poder do lobismo junto aos
parlamentares e ao governo confirma essa distorção. O sistema político
brasileiro tornou-se um sistema de silenciamentos e cumplicidades. A
crítica social foi inviabilizada pelos donos oficiais da verdade, seja a
crítica popular, seja a crítica profissional dos especialistas. O
cala-boca virou instrumento de dominação. Partidos e movimentos sociais
organizados ignoram ou desqualificam as interpretações que não venham de
seus próprios quadros. Não há debate. Criou-se no Brasil o mero teatro
da participação política e a real exclusão da diversidade e das demandas
sociais emergentes, as que não foram capturadas pelo sistema de
conivências, cumplicidades e temores. Um extenso silêncio acumula, na
verdade, um elenco extenso de demandas sociais não reconhecidas nem pelo
governo, nem pelos partidos, nem pelos grupos de mediação que fecharam
os canais de comunicação entre o povo e o poder.
Esse sistema político deteriorado está claramente presente na crítica
contida nos descontentamentos destes dias. Uma grande massa de
silenciados no cotidiano encontrou uma brecha para gritar suas
diversificadas e desencontradas demandas e manifestar sua crítica do
poder e dos governos. Num regime político baseado em pautas de
negociação de grandes quantias e grandes porcentagens, foi uma simples
demanda de redução de 20 centavos na tarifa dos ônibus que disseminou a
revolta, aglutinou o elenco das pequenas demandas sociais e fez emergir
um novo sujeito político, que é o das demandas residuais tratadas como
irrelevantes.
A nova revolta do vintém colocou no centro do processo político
brasileiro a fome de palavra e a fome de direitos sociais. Trata-se de
uma nova pobreza, a pobreza de direitos, nos abusos que reduziram o
transporte público a uma punição, a educação a uma condenação à falta de
destino e de futuro, a saúde pública a uma doença. Henri Lefebvre,
eminente sociólogo francês, estudioso da revolta estudantil de 1968, foi
quem trabalhou teoricamente a revolta dos subterrâneos, a insubmissão
das demandas que não foram capturadas pelo poder, a coalização dos
resíduos do que não encontrou canal de expressão nos meios políticos e
institucionais. Aqui, também, o fato de que as manifestações não se
enquadrem em nenhum dos esquemas convencionais de interpretação sugere
que estamos em face da irrupção do descontentamento dos que não foram
contemplados pelas políticas sociais dos governos. A demagógica e
ilusória prioridade aos pobres deixou de lado a classe média e suas
demandas justas e cidadãs. Os órfãos de políticas sociais foram às ruas,
cercaram os palácios e querem já uma revisão do poder e da concepção de
poder.
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* Sociólogo. Escritor.
Fonte: Estadão on line, 30/06/2013
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