Paulo Rosenbaum*
Seria possível coletar muita informação
dos cartazes, faixas e slogans destes últimos dez dias. Poderíamos até
fundi-las com as do maio de 1968 em Paris. Mas pergunto se será possível
ao Estado atender tantos pedidos simultâneos? Se não fizemos em 500
anos, vão providenciar para a semana? Não seria, talvez, exigir demais?
Não que o Estado tenha se comportado bem com o cidadão, pelo contrário. O
Bullying de Estado comprova o quanto o Poder contemporâneo massacra
seus súditos.
Há algum tempo o filósofo Edgard Morin
indagou se na luta por transformações não nos faltaria um terceiro
elemento? Aquele que complementa liberdade e igualdade, para além da
liberdade e da igualdade. Um elo vital que caracterizaria uma outra
perspectiva existencial. Segundo ele, nem antes nem depois nem nunca foi
colocado em pauta!
Os grupos que foram às ruas pelo País
saíram inicialmente com pauta única, mono específica: redução dos
valores das passagens. Avaliando o eco que o MPL conquistou, ampliou as
ordens (não importa que o MPL não tenha autorizado a participação de
outras pautas, a sociedade é, para usar o jargão, horizontal e
autonômica, portanto, todos devem ter o mesmo direito de reivindicar)
desta vez muito mais abrangentes e abstratas. Os sonhos foram colocados
nas demandas. Aspirações românticas. Desejos breves. Necessidades
imediatas. Coisas inadiáveis. Tudo para ontem, para já, numa pauta
insaciável.
O que se pede é muito mais que troca de
regime. A demanda foi quase que comandada por uma inusitada rede de
significados. É como se o consumo e a energia motriz acumulada por
tantos anos de paralisia, sedentarismo e vida virtual tivessem jorrado
para fora das cabeças e dos corpos ao mesmo tempo. Agora, passado o
espasmo, já é outra coisa. Racionalizada e analisada a coisa toda não só
perde um pouco de graça, esvazia-se o sentido. O charme da bagunça e da
rebelião era exatamente guiar-se pela intuição, imaturidade, matizado
por certa irracionalidade e leveza. Anarquismo ameno, bem humorado, que
não podia ser reduzido a um gesto político muito menos ser interpretado à
luz das ciências sociais. A concretude aspirada – diminuir as mazelas
reais – era menos importante do que só se expressar. Testemunhe você
mesmo, muitos nem imaginam o que é PEC 37 ou Ato Médico.
A vida adota um ritmo desconcertante, que
vêm atropelando a academia, analistas e institutos de pesquisa. O que
vimos foi parecido com a escrita automática de Breton: muito, rápido e
no ritmo inconsciente.
Um deslocamento drenado do mundo digital
para as ruas que fique sem eixo, pode no final, ficar tentado a tocar
fogo no circo. Só que os piromaníacos não podem esquecer da
responsabilidade individual. A multidão não dissipa seus próprios
rastros. Sem posicionamento mais claros, acaba atirando no próprio pé.
Ninguém quer ser engolido pelo fogo alheio, a não ser no amor. Se é para
ser Utopia que se mire bem mais alto.
O terceiro elemento ao qual se referia
Morin é a fraternidade. Ela decidiria muitas coisas que os Estados
contemporâneos têm se mostrado incapazes de contemplar. A ajuda mútua, a
solidariedade e a delicadeza seriam, bons inícios. Vociferar contra o
Estado é apenas o sintoma da fratura entre povo e poder. Falta
acrescentar à agenda novas formas de educar que supere a mediocridade de
“mais escolas”. Não significa nada “mais médicos” assim como “mais
leis” pode nos dar a régua inútil, sem compasso. Ninguém sabe muito bem
qual é, mas talvez possamos começar considerando uma proposta da
hermenêutica que faz a proposição de que educação é educar-se. Educar-se
é ter em mente que um Estado mãe joana e pai de todos nunca conseguiu,
sozinho, suprir as demandas sociais. Só a liberdade individual pode
conduzir a uma coletividade com mais justiça social.
Então o grosso do trabalho deveria ser na
base da solidariedade, do envolvimento, de uma aproximação – e nunca de
apartamento — entre todas as classes sociais. De uma ruptura cultural
sem violência, sem escândalo e sem rasgar a constituição.
Exercitar-se em ver o outro como se não
fosse objeto ou mero estorvo. Só porque ele não pertence a sua família,
clã, ou movimento político?
A propagação multipolar e excêntrica do
pavio aceso por pouco mais de 150 pessoas não pode nem deve simplesmente
se desmanchar. Tampouco o conjunto de exigências pode ser lapidado
conforme o desejo mágico de quem quer que só sua filosofia se imponha à
diversidade de pessoas que querem se manifestar.
Todas têm pautas muito particulares,
quase intermináveis, pouco conjugáveis. Observando os boatos e as redes
paranóicas que se seguiram aos últimos dias – de golpe militar da
extrema direita ao desembarque de comandos cubanos — nota-se melhor como
o beco pode ser mais complicado que supõe nossa filosofia. A
manipulação política do medo pode e será canalizada em muitas direções
diferentes.
Não é o regime legal e
constitucionalmente estabelecido que precisa renunciar. Ninguém, nem
mesmo uma multidão municiada com causas justas, pode virar as regras do
jogo sem o sacrifício da paz social. Se o partido governista realmente
quiser dialogar precisa fazer muito mais do que acenar com boas
intenções, reuniões de cúpula e pronunciamentos. Abdicar do desejo de
hegemonia partidária é vital. Formatar uma coalização alinhada com
objetivos comuns, sem base fretada, sem truques, sem couraça, sem
trapaça. Para redução de dano da corrupção só mesmo diminuição da carga
fiscal e descentralização dos impostos.
Quando alguém dá o pontapé o mundo roda diferente, e já não se é dono da energia que deu luz ao movimento.
Galileu estava certo, a esfera continua rolando.
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*Paulo Rosenbaum é médico e escritor. Mestre e PhD em ciências, é
pós-doutor em medicina preventiva (USP). É autor de "A Verdade Lançada
ao Solo" (editora Record). Tem uma coluna semanal em "Coisas de
Política", do Jornal do Brasil.
Fonte: Estadão on line, 25/06/2013
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