FERNANDO GABEIRA *
Alguma coisa está acontecendo e eu não sei exatamente o
que é. Antes dos conflitos de rua no Brasil, recebi o livro de Manuel
Castells Redes de Indignação e Esperança. Castells é professor numa
universidade da Califórnia e dedica-se ao estudo das redes e sua
importância neste início do século. Examinou a Primavera Árabe, o Occupy
Wall Street, o movimento dos indignados na Espanha e o caso da
Islândia.
Antes mesmo desses movimentos, Castells via nas redes o caminho por
meio do qual uma nova geração de ativistas buscaria mudança política
fora do alcance dos métodos habituais de controle político e econômico.
Segundo Castells, esses movimentos são mais voltados para explorar o
sentido da vida do que para conquistar o Estado capitalista.
Essa observação é, para mim, curiosa. Nos anos 60, alguns, como eu,
transitaram do existencialismo para o marxismo. Agora, o existencialismo
parece estar de volta. De novo, uma parcela da juventude sai em busca
do sentido: conectar as mentes, criar significados, contestar o poder é a
frase que Castells utilizou para sintetizar o programa dessas redes.
Se isso é verdadeiro para o Brasil, os R$ 0,20 de aumento dos ônibus
foram apenas um dos pretextos para expressar a revolta. E os grupos da
esquerda clássica, apesar de seu estardalhaço, funcionam aí apenas como
aquelas lavagens na pedra que dão aparência de velho ao jeans que acaba
de ser fabricado.
Criar significados em política significa também colocá-los na mesa
para o debate. Não posso, por exemplo, condenar o Movimento Passe Livre
porque no passado apoiei a tese do fim do passaporte no mundo. Até que
me deparei com a gigantesca realidade da imigração internacional. A
inquietação com o transporte coletivo pode ser existencialmente
resolvida com a palavra de ordem passe livre. Mas apenas ela não muda a
realidade dos que usam ônibus no Brasil.
O preço é amparado no aumento da inflação, que não deveria ser a
única referência. Conforto, pontualidade, respeito ao usuário, condições
de trabalho dos motoristas, tudo precisa ser monitorado. Mas existe uma
cumplicidade histórica de vereadores e deputados com as empresas de
ônibus. No Rio de Janeiro, por anos, houve até pagamento mensal na
Câmara. Mensalinho, mensalão, olha pro céu olha pro chão.
Lutar só pelo passe livre nos remete a um ônibus utópico. O que fazer
com pessoas esgotadas depois de um dia de trabalho? Dizer, ano após
ano, "coragem, irmão, o reino de Deus está próximo"?
A única cidade que adotou o passe livre, Porto Real, no Rio de
Janeiro, o fez para atrair grandes empresas que queriam se instalar lá:
Coca Cola e Citroën Peugeot. Foi um cálculo econômico e eu vou lá para
estudar o caso.
"Isaiah Berlin compara as habilidades de um governante às de um
motorista que precisa de reflexos porque se vê, constantemente, diante
de situações novas e inesperadas.
De nada adiantam erudição e
conhecimento
histórico nem o batalhão de conselheiros.
Há uma solidão
inescapável
no ofício do estadista."
Um dos aprendizados mais importantes para a geração que saiu às ruas
no passado é o compromisso com a democracia, o que significa rejeitar a
tese de que os fins justificam os meios. A violência derruba as melhores
intenções. Ela é o inimigo interno que corrói a simpatia popular e
acaba esvaziando as ruas. Em alguns lugares do mundo, governos usam
provocadores infiltrados para desmoralizar o adversário.
Conselhos são vistos com desprezo num momento como este. Mas a
história não começa do zero. Essa presunção é absurda e só tem validade
na cabeça do PT, que acredita ter inaugurado o Brasil, em 2003.
Como as inquietações se transformam em mudanças, se a própria
timoneira parece perdida? Dilma diz que está tudo maravilhoso, e tome
vaia da torcida. O governo trouxe a Copa do Mundo para o Brasil por
achar que isso era uma trunfo eleitoral imbatível. Todos os seus
defensores afirmam que foi uma condenação da classe média alta. Como se
fosse preciso examinar a renda antes de avaliar o peso de um protesto e
como se as ruas de todo o País, de São Paulo a São Gonçalo, estivessem
tomadas por gente da alta classe média.
É um momento duro para ela. Mas foi o PT que fez baixar o mais pesado
manto de cinismo sobre a vida política brasileira. Dilma afirmou um dia
que não tem perfil de candidata. Concordo com sua análise. No entanto,
foi eleita num período de crescimento econômico, de esfuziantes gastos
oficiais e milhões consumidos na máquina de propaganda.
Isaiah Berlin compara as habilidades de um governante às de um
motorista que precisa de reflexos porque se vê, constantemente, diante
de situações novas e inesperadas. De nada adiantam erudição e
conhecimento histórico nem o batalhão de conselheiros. Há uma solidão
inescapável no ofício do estadista.
Dilma foi embriagada pela dose de otimismo que o marketing ministrou.
Afirma que são terroristas os que alertam para a inflação. Em seguida,
diz que o governo vai dar a volta por cima. Segundo a própria canção, só
se dá a volta por cima depois de uma queda e de sacudir a poeira.
Ela lançou uma lei de acesso a informações e proíbe os assessores de
divulgar dados sobre suas viagens oficiais, hotéis, comitivas, gastos,
sobretudo gastos.
Quando a maré baixa, dizem os analistas econômicos, fica evidente
quem está nadando nu. Isso vale para os atores políticos nas grandes
viradas históricas.
Lula diz que elegeu postes para melhor iluminar o Brasil. Referia-se a
Dilma e a Fernando Haddad. É muito poético, até que se descubra a
realidade úmida do poste, quando adotado pelos cachorros da vizinhança.
Para mim, o sistema de dominação que transformou a política brasileira num bordel entrou em declínio.
Na Islândia, que é muito pequena para ser um modelo, as revoltas
desembocaram numa substituição do governo, numa nova maneira de gastar o
dinheiro e numa Constituição moderna, que busca integrar a participação
popular, potencializada pela revolução digital.
Alguma coisa está acontecendo no Brasil. Você pode ser contra, a
favor ou mesmo ficar em cima do muro. Mas não pode negar a frase de
Galileu Galilei: "Eppur si muove" (ainda se move).
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* FERNANDO GABEIRA É JORNALISTA.
Fonte: Estadão on line, 21/06/2013
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