domingo, 23 de junho de 2013

O futebol e a religião

 Rubem Alves*
Embora os doutores da Igreja ainda não tenham se dado conta da gravidade da situação, é inquestionável que o jogo de futebol tem profundas implicações teológicas, algumas delas beirando a heresia.

Dei-me conta das relações entre o futebol e a religião quando, jovem, estudava num seminário protestante. Embora eu nunca tivesse sido bom de bola — cabecear uma bola que caía das alturas era coisa que me aterrorizava — eu era um torcedor fiel do time do seminário. As partidas eram sacramentadas com um prelúdio litúrgico antes que o juiz soprasse o apito. Os dois times reuniam-se no meio do campo e os jogadores, cabeça baixa, contritos, oravam. Embora eu me encontrasse longe e nunca tivesse ouvido os pedidos que eram feitos, uma coisa era clara: Deus estava presente. Estava sendo invocado para supervisionar o jogo. Se Deus era invocado então o jogo de futebol estava em suas mãos e, tivesse Dante vivido em nossos tempos, sua "Divina Comédia" teria um capítulo dedicado ao futebol.

Protestantes, orava-se ao único Deus todo-poderoso que não admite despachantes espirituais de segundo escalão. Ele mesmo cuida de todas as coisas. Seria impróprio pedir-lhe que favorecesse um dos times. Que vença o melhor! Diga-se de passagem que, embora não se fizesse esse pedido, estava teologicamente implícito que Deus é que determina o resultado do jogo posto que, sendo onipotente, não é concebível imaginar que um gol pudesse acontecer sem que o fosse por sua vontade. Tudo o que acontece acontece porque Deus quer. O jogo, vivido pelos jogadores e pela torcida como algo a ser resolvido no futuro, nos 90 minutos que se seguiriam, era a coisa vista do lado de cá. Mas, visto do lado de lá, “sub specie aeternitais”, com os olhos de Deus, que é onisciente e onipotente, o placard já estava definido. A divina decisão já estava feita. Isso está de acordo com a consoladora doutrina da dupla predestinação que afirma que tudo o que acontece de maravilhoso ou horrível acontece porque Deus o quis.
Iniciada a partida os jogadores se esqueciam da oração e dos olhos atentos de Deus e não era infrequente que a partida degenerasse em brigas e palavrões.

Isso, no campo de futebol de um seminário protestante. Mas no mundo profano as coisas são diferentes. Que uma partida de futebol é um evento religioso não resta a menor dúvida. Nunca vi visita de papa ou milagre de santo que provocasse entusiasmo tamanho. Entusiasmo, como se sabe, é uma palavra sagrada que quer dizer “ter um deus dentro de si.” E os torcedores realmente devotos terminam num estado de transe semelhante ao que acontece nos terreiros de candomblé.

Os preparativos religiosos para a partida começam muito antes. Acendem-se velas, rezam-se novenas, fazem-se despachos em encruzilhadas. Os jogadores, ao entrar em campo, benzem-se, fazem o sinal da cruz, beijam santinhos, rezam baixinho, o mesmo acontecendo com a torcida.

É óbvio que, às almas religiosas, as hostes divinas, em número maior que o de torcedores presentes, enchem os espaços do estádio. Se assim não fosse, de que adiantariam as invocações e promessas? Os anjos nos seus vários níveis, azuis e amarelos, serafins, querubins, interrompem a atividade que os ocupará por toda a eternidade, qual seja, a de cantar o “Sanctus” e os “Améns” (no céu todos estão de acordo permanentemente), abandonam o coro para assistir a uma partida, comendo algodão doce feito de nuvens. Até Deus fica feliz. Como é boa a trégua no canto gregoriano.

Treinada nos mistérios rigorosos da teologia, minha mente vacila. Não consigo prever as convulsões celestiais que um jogo de futebol poderá provocar. Deus vê o jogo, é claro, pois ele é onisciente. Mas o que importa é a pergunta: ele torce ou não torce? Grita “goool”? Jogadores e torcedores afirmam que os santos se intrometem, dando uma ajudazinha, fazendo com que a bola fraca se desvie no zagueiro e engane o goleiro. “Obrigado, meu Santo Expedito! Obrigado Padim Padre Cícero! Foi por Deus!”. O futebol está cheio de sinais de milagres. Quem assiste a uma partida de futebol não precisa ir a Fátima.

Imaginemos, ao contrário, que Deus fique de fora, não interfira. Nesse caso a partida fica sendo um evento durante o qual a onipotência divina está desativada, no campo. Coisas acontecem sem que Deus queira! Mas se algo acontece sem que Deus queira, onde está a sua onipotência? É como se Deus deixasse de ser Deus. E isso é impensável. É heresia.
E se torcedores de times diferentes invocam o mesmo santo pedindo a vitória? Como é que esse santo vai tomar a decisão? Protegerá o time de que é torcedor? Ou se valerá do recurso de “cara ou coroa”?

E as entidades celestiais? Formarão torcidas, cada uma torcendo por um time? Nesse caso a divina harmonia do universo estaria rompida. Os céus: terão eles se tornado num hospício habitado por grupos esquizofrênicos que torcem por times diferentes?

Todas essas questões passam pela cabeça de um teólogo. E ele teme que, numa simples partida de futebol, o destino do universo esteja em jogo. Afinal de contas, como todo torcedor sabe, cada partida de futebol é uma luta entre os exércitos celestiais e as hostes infernais...
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* Teólogo. Educador. Escritor.
Fonte:  http://correio.rac.com.br/_conteudo/2013/06/colunistas/rubem_alves/72806-o-futebol-e-a-religiao.html
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