sábado, 22 de junho de 2013

Articular mentes, criar significado, contestar o poder

 

Manifestantes se reúnem para protesto nas ruas de Porto Alegre

Cultura antecipa trecho de novo livro do sociólogo Manuel Castells, “Redes de Indignação e Esperança – Movimentos Sociais na Era da Internet”, que será lançado pela Zahar

Ninguém esperava. Num mundo turvado por aflição econômica, cinismo político, vazio cultural e desesperança pessoal, aquilo apenas aconteceu. Subitamente, ditaduras podiam ser derrubadas pelas mãos desarmadas do povo, mesmo que essas mãos estivessem ensanguentadas pelo sacrifício dos que tombaram. Os mágicos das finanças passaram de objetos de inveja pública a alvos do desprezo universal. Políticos viram-se expostos como corruptos e mentirosos. Governos foram denunciados. A mídia se tornou suspeita. A confiança desvaneceu-se. E a confiança é o que aglutina a sociedade, o mercado e as instituições. Sem confiança, nada funciona. Sem confiança, o contrato social se dissolve, e as pessoas desaparecem, ao se transformarem em indivíduos defensivos lutando pela sobrevivência. Entretanto, nas bordas de um mundo que havia chegado ao limite de sua capacidade de propiciar aos seres humanos a faculdade de viver juntos e compartilhar sua vida com a natureza, mais uma vez os indivíduos realmente se uniram para encontrar novas formas de sermos nós, o povo.

De início, eram uns poucos, aos quais se juntaram centenas, depois formaram-se redes de milhares, depois ganharam o apoio de milhões, com suas vozes e sua busca interna de esperança, confusas como eram, ultrapassando as ideologias e a publicidade para se conectar com as preocupações reais de pessoas reais na experiência humana real que fora reivindicada. Começou nas redes sociais da internet, já que estas são espaços de autonomia, muito além do controle de governos e empresas, que, ao longo da história, haviam monopolizado os canais de comunicação como alicerces de seu poder. Compartilhando dores e esperanças no livre espaço público da internet, conectando-se entre si e concebendo projetos a partir de múltiplas fontes do ser, indivíduos formaram redes, a despeito de suas opiniões pessoais ou filiações organizacionais. Uniram-se. E sua união os ajudou a superar o medo, essa emoção paralisante em que os poderes constituídos se sustentam para prosperar e se reproduzir, por intimidação ou desestímulo – e quando necessário pela violência pura e simples, seja ela disfarçada ou institucionalmente aplicada. Da segurança do ciberespaço, pessoas de todas as idades e condições passaram a ocupar o espaço público, num encontro às cegas entre si e com o destino que desejavam forjar, ao reivindicar seu direito de fazer história – sua história –, numa manifestação da autoconsciência que sempre caracterizou os grandes movimentos sociais.

Os movimentos espalharam-se por contágio num mundo ligado pela internet sem fio e caracterizado pela difusão rápida, viral, de imagens e ideias. Começaram no sul e no norte, na Tunísia e na Islândia, e de lá a centelha acendeu o fogo numa paisagem social diversificada e devastada pela ambição e manipulação em todos os recantos deste planeta azul. Não foram apenas a pobreza, a crise econômica ou a falta de democracia que causaram essa rebelião multifacetada. Evidentemente, todas essas dolorosas manifestações de uma sociedade injusta e de uma comunidade política não democrática estavam presentes nos protestos. Mas foi basicamente a humilhação provocada pelo cinismo e pela arrogância das pessoas no poder, seja ele financeiro, político ou cultural, que uniram aqueles que transformaram medo em indignação, e indignação em esperança de uma humanidade melhor. Uma humanidade que tinha de ser reconstruída a partir do zero, escapando das múltiplas armadilhas ideológicas e institucionais que tinham levado inúmeras vezes a becos sem saída, forjando um novo caminho, à medida que o percorria. Era a busca de dignidade em meio ao sofrimento da humilhação – temas recorrentes na maioria dos movimentos.

Movimentos sociais conectados em rede espalharam-se primeiro no mundo árabe e foram confrontados com violência assassina pelas ditaduras locais. Vivenciaram destinos diversos, incluindo vitórias, concessões, massacres repetidos e guerras civis. Outros movimentos ergueram-se contra o gerenciamento equivocado da crise econômica na Europa e nos Estados Unidos, por governos que se colocavam ao lado das elites financeiras responsáveis pela crise à custa de seus cidadãos: Espanha, Grécia, Portugal, Itália (onde mobilizações de mulheres contribuíram para pôr fim à bufa commedia dell’arte de Berlusconi), Grã-Bretanha (onde a ocupação de praças e a defesa do setor público por sindicatos e estudantes se deram as mãos) e, com menos intensidade, mas simbolismo semelhante, na maioria dos outros países europeus. Em Israel, um movimento espontâneo com múltiplas demandas tornou-se a maior mobilização de base da história do país, obtendo a satisfação de muitas de suas reivindicações.

Nos Estados Unidos, o movimento Occupy Wall Street, tão espontâneo quanto os outros e igualmente conectado em redes no ciberespaço e no espaço urbano, tornou-se o evento do ano e afetou a maior parte do país, a ponto de a revista Time atribuir ao “Manifestante” o título de personalidade do ano. E o lema dos 99%, cujo bem-estar fora sacrificado em beneficio do 1% que controla 23% das riquezas do país, tornou-se tema regular na vida política americana. Em 15 de outubro de 2011, uma rede global de movimentos Occupy, sob a bandeira “Unidos pela Mudança Global”, mobilizou centenas de milhares de pessoas em 951 cidades de 82 países, reivindicando justiça social e democracia verdadeira. Em todos os casos, os movimentos ignoraram partidos políticos, desconfiaram da mídia, não reconheceram nenhuma liderança e rejeitaram toda organização formal, sustentando-se na internet e em assembleias locais para o debate coletivo e a tomada de decisões.

Este livro busca analisar esses movimentos: formação, dinâmica, valores e perspectivas de transformação social. É uma investigação sobre os movimentos sociais da sociedade em rede, movimentos que, em última instância, farão as sociedades do século 21, ao se engajarem em práticas conflitivas enraizadas nas contradições fundamentais de nosso mundo. A análise aqui apresentada baseia-se na observação dos movimentos, mas não tentará descrevê-los, nem será capaz de fornecer provas definitivas dos argumentos expostos no texto. Já está disponível uma profusão de informações, artigos, livros, reportagens e arquivos de blogs que podem ser facilmente consultados navegando-se pela internet. É cedo demais para construir uma interpretação sistemática, acadêmica, desses movimentos. Assim, meu propósito é mais limitado: sugerir algumas hipóteses, baseadas na observação, sobre a natureza e as perspectivas dos movimentos sociais em rede, com a esperança de identificar os novos rumos da mudança social em nossa época e de estimular um debate sobre as implicações práticas (e, em última instância, políticas) dessas hipóteses.

Essa análise tem por base uma teoria fundamentada do poder que apresentei no meu livro Communication Power (2009), teoria que fornece substrato para a compreensão dos movimentos aqui estudados.

Parto da premissa de que as relações de poder são constitutivas da sociedade porque os que detêm o poder constroem as instituições segundo seus valores e interesses. O poder é exercido por meio da coerção (o monopólio da violência, legítima ou não, pelo controle do Estado) e/ou pela construção de significado na mente das pessoas, mediante mecanismos de manipulação simbólica. As relações de poder estão embutidas nas instituições da sociedade, particularmente nas do Estado. Entretanto, uma vez que as sociedades são contraditórias e conflitivas, onde há poder há também contrapoder, que considero a capacidade de os atores sociais desafiarem o poder embutido nas instituições da sociedade com o objetivo de reivindicar a representação de seus próprios valores e interesses. Todos os sistemas institucionais refletem as relações de poder e seus limites tal como negociados por um interminável processo histórico de conflito e barganha. A verdadeira configuração do Estado e de outras instituições que regulam a vida das pessoas depende dessa constante interação de poder e contrapoder.

Coerção e intimidação, baseadas no monopólio estatal da capacidade de exercer a violência, são mecanismos essenciais de imposição da vontade dos que controlam as instituições da sociedade. Entretanto, a construção de significado na mente das pessoas é uma fonte de poder mais decisiva e estável. A forma como as pessoas pensam determina o destino de instituições, normas e valores sobre os quais a sociedade é organizada. Poucos sistemas institucionais podem perdurar baseados unicamente na coerção. Torturar corpos é menos eficaz do que moldar mentalidades. Se a maioria das pessoas pensa de forma contraditória em relação aos valores e normas institucionalizados em leis e regulamentos aplicados pelo Estado, o sistema vai mudar, embora não necessariamente para concretizar as esperanças dos agentes da mudança social. É por isso que a luta fundamental pelo poder é a batalha pela construção de significado na mente das pessoas.

Os seres humanos criam significado interagindo com seu ambiente natural e social, conectando suas redes neurais com as redes da natureza e com as redes sociais. A constituição de redes é operada pelo ato da comunicação. Comunicação é o processo de compartilhar significado pela troca de informações. Para a sociedade em geral, a principal fonte da produção social de significado é o processo da comunicação socializada. Esta existe no domínio público, para além da comunicação interpessoal. A contínua transformação da tecnologia da comunicação (TI) na era digital amplia o alcance dos meios de comunicação para todos os domínios da vida social, numa rede que é simultaneamente global e local, genérica e personalizada, num padrão em constante mudança. O processo de construção de significado caracteriza-se por um grande volume de diversidade. Existe, contudo, uma característica comum a todos os processos de construção simbólica: eles dependem amplamente das mensagens e estruturas criadas, formatadas e difundidas nas redes de comunicação multimídia. Embora cada mente humana individual construa seu próprio significado interpretando em seus próprios termos as informações comunicadas, esse processamento mental é condicionado pelo ambiente da comunicação. Assim, a mudança do ambiente comunicacional afeta diretamente as normas de construção de significado e, portanto, a produção de relações de poder.

Nos últimos anos, a mudança fundamental no domínio da comunicação foi a emergência do que chamei de autocomunicação – o uso da internet e das redes sem fio como plataformas da comunicação digital. É comunicação de massa porque processa mensagens de muitos para muitos, com o potencial de alcançar uma multiplicidade de receptores e de se conectar a um número infindável de redes que transmitem informações digitalizadas pela vizinhança ou pelo mundo. É autocomunicação porque a produção da mensagem é decidida de modo autônomo pelo remetente, a designação do receptor é autodirecionada e a recuperação de mensagens das redes de comunicação é autosselecionada. A comunicação de massa baseia-se em redes horizontais de comunicação interativa que, geralmente, são difíceis de controlar por parte de governos ou empresas. Além disso, a comunicação digital é multimodal e permite a referência constante a um hipertexto global de informações cujos componentes podem ser remixados pelo ator comunicativo segundo projetos de comunicação específicos. A autocomunicação de massa fornece a plataforma tecnológica para a construção da autonomia do ator social, seja ele individual ou coletivo, em relação às instituições da sociedade. É por isso que os governos têm medo da internet, e é por isso que as grandes empresas têm com ela uma relação de amor e ódio, e tentam obter lucros com ela, ao mesmo tempo que limitam seu potencial de liberdade (por exemplo, controlando o compartilhamento de arquivos ou as redes com fonte aberta).

Em nossa sociedade, que conceituei como uma sociedade em rede, o poder é multidimensional e se organiza em torno de redes programadas em cada domínio da atividade humana, de acordo com os interesses e valores de atores habilitados. As redes de poder o exercem sobretudo influenciando a mente humana (mas não apenas) mediante as redes multimídia de comunicação de massa. Assim, as redes de comunicação são fontes decisivas de construção do poder.

Por sua vez, as redes de poder em vários domínios da atividade humana constituem redes entre elas próprias. As redes financeiras e as multimídia globais estão intimamente ligadas, e essa metarrede particular detém um poder extraordinário. Mas não todo o poder. A metarrede das finanças e da mídia é ela própria dependente de outras grandes redes, tais como a política, a de produção cultural (que abrange todos os tipos de artefatos culturais, não apenas produtos de comunicação), a militar/de segurança, a rede criminosa e a decisiva rede global de produção e aplicação de ciência, tecnologia e administração do conhecimento. Essas redes não se fundem. Em vez disso, envolvem-se em estratégias de parceria e competição formando redes ad hoc em torno de projetos específicos. Mas todas têm um interesse comum: controlar a capacidade de definir as regras e normas da sociedade mediante um sistema político que responde basicamente a seus interesses e valores. É por isso que a rede de poder construída em torno do Estado e do sistema político realmente desempenha papel fundamental no estabelecimento de uma rede geral de poder. Isso porque, em primeiro lugar, a operação estável do sistema, assim como a reprodução das relações de poder em cada rede, depende, em última instância, das funções de coordenação e regulação do Estado, como ficou demonstrado no colapso dos mercados financeiros em 2008, quando governos foram chamados para efetuar o resgate no mundo todo.

Além disso, é por meio do Estado que diferentes formas de exercício do poder em distintas esferas sociais relacionam-se ao monopólio da violência como a capacidade de, em última instância, impor o poder. Assim, enquanto as redes de comunicação processam a construção de significado em que se baseia o poder, o Estado constitui a rede-padrão para o funcionamento adequado de todas as outras redes de poder.

Assim, de que modo as redes de poder se interconectam, embora preservando sua esfera de ação? Sugiro que o fazem por um mecanismo fundamental de construção do poder na sociedade em rede: a alternância de poder. Trata-se da capacidade de conectar duas ou mais diferentes redes no processo de construir o poder para cada uma delas em seus respectivos campos.

Dessa forma, quem detém o poder na sociedade em rede? Os programadores com a capacidade de elaborar cada uma das principais redes de que dependem a vida das pessoas (governo, parlamento, estabelecimento militar e de segurança, finanças, mídia, instituições de ciência e tecnologia etc.). E os comutadores que operam as conexões entre diferentes redes (barões da mídia introduzidos na classe política, elites financeiras que bancam elites políticas, elites políticas que se socorrem de instituições financeiras, empresas de mídia interligadas a empresas financeiras, instituições acadêmicas financiadas por grandes empresas etc.).

(tradução de Carlos Alberto Medeiros)
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*por MANUEL CASTELLS Sociólogo espanhol e um dos teóricos mais citados no campo dos estudos de comunicação desde os anos 1990, quando publicou a trilogia Sociedade em Rede, na qual usou a então nascente noção de conexão global para tratar das mudanças nas esferas da cultura, da interação social e do exercício do poder político
Fonte: ZH on line, 22/06/2013

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