José Tolentino Mendonça*
A poesia de Pessoa é um diagnóstico espiritual que
cartografa com exactidão não só as aspirações, mas também o profundo
sentimento de perda que atravessa a Modernidade. A marca da cultura
moderna não reside, ao contrário do que se diz, na ausência do
sentimento religioso, da ética ou da estética. O que caracteriza a
Modernidade, mais do que o vazio, é um extravagante excesso, mas sob um
regime novo: o da radical autonomização que confere à cultura e ao
homem um perfil estilhaçado. A partir de agora flutuamos como
fragmentos de uma unidade perdida e inalcançável, e como sujeitos
organizamo-nos entre orfandade e ficção.
No início do “Livro do Desassossego”, essa espécie de
diário da nossa alma moderna, Fernando Pessoa (perdão, Bernardo Soares)
avança as coordenadas epocais em que se situa, em que nos situamos:
“Nasci em um tempo em que a maioria dos jovens haviam
perdido a crença em Deus, pela mesma razão que os seus maiores a haviam
tido - sem saber porquê. E então, por que o espírito humano tende
naturalmente para criticar por que sente, e não por que pensa, a
maioria desses jovens escolheu a Humanidade para sucedâneo de Deus.
Pertenço, porém, àquela espécie de homens que estão sempre na margem
daquilo a que pertencem... Por isso nem abandonei Deus tão amplamente
como eles, nem aceitei nunca a Humanidade… Não sabendo o que é a vida
religiosa, nem podendo sabê-lo, por que se não tem fé com a razão; não
podendo ter fé na abstracção do homem, nem sabendo mesmo que fazer dela
perante nós, fi cava-nos, como motivo de ter alma, a contemplação
estética da vida”.
Porém, a “contemplação estética da vida”, só por si, é
insuficiente como motor e sentido de uma existência. Esta entra
demasiado depressa, como o poeta reconhece, num inverno inclemente e
gelado. Por isso escreve: “Quando acabará isto tudo, estas ruas onde
arrasto a minha miséria, e estes degraus onde encolho o meu frio e
sinto as mãos da noite por entre os meus farrapos?”. E é aqui, no
profundo drama da condição humana, na sua radical exposição, que se
insinua a nostalgia de um Deus verdadeiro, em inesquecível diálogo com a
parábola do filho pródigo (Lucas 15, 11-32): “Se um dia Deus me viesse
buscar e me levasse para sua casa e me desse calor e afeição… Às vezes
penso isto e choro com alegria a pensar que o posso pensar…”.
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* Teólogo. Escritor. Poeta português.
Fonte: Site de Portugal: http://www.snpcultura.org/vol_fernando_pessoa_orfao_de_Deus.html
Imagem: Almada Negreiros (det.)
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