sexta-feira, 28 de junho de 2013

Para decifrar o Brasil

Carlos Guilherme Mota*
Ana Paula Paiva/Valor / Ana Paula Paiva/Valor
 FHC: visões e interpretações decisivas da cultura, sociedade e política

"Onde o Brasil?", perguntava Carlos Drummond de Andrade em conhecido e denso verso. A seca indagação nos transporta para além do óbvio e solicita nova reflexão. Readquire significado nesta hora em que a sociedade brasileira parece querer se descobrir em "manifestações de rua", expressão que alcança, ela também, novo significado.

Hora de acordar, pois, ao lado de uma elite nem tão educada, surgem "rebeldes primitivos" anunciados, sobretudo oriundos do setor de serviços e escolar, que procuram fazer-se ouvir, por vezes tartamudeando, dado o enorme vácuo de formação e de boas escolas e universidades, característica deste país nos últimos anos. É a tal "carência mental" que, sob o nazismo, agoniava Karl Mannheim. Ou seja, vive-se a sociedade precária na qual o que entendíamos por "educação" política é marcada pela abstinência de leituras, o que explica por que, no atual quadro, a perspectiva histórica se tornou rala e rudimentar a sociologia, em mar de palpites sobre "classe média", "desenvolvimento sustentável", "neocapitalismo", "globalização", "sociedade em rede", "pós-modernidade".

Para além desse caldeirão de conceitos mal cozidos, multidões saem às ruas nessa magnífica mistura de frações sociais, em busca de algum horizonte histórico-cultural que lhes permita (quando menos) ensaiar participação e inclusão na cidadania, ainda que utopicamente como em 68, na invenção de sua/nossa história. Que deseja tal multidão?, perguntará o leitor. Resposta: respeito, transparência na política e na vida pública. E transitar da condição precária de súditos-contribuintes à de cidadãos ativos e válidos.

Nesse contexto, "Pensadores Que Inventaram o Brasil" (Companhia das Letras, 329 págs., R$ 39,50), que Fernando Henrique Cardoso acaba de lançar, torna-se importante, por analisar e "conversar" com estadistas e intelectuais que procuraram inventar ou reinventar o Brasil. Atualidade plena, pois, como diria Joaquim Nabuco, um dos estadistas estudados por FHC, "muitas vezes um país percorre um longo caminho para voltar, cansado e ferido, ao ponto donde partiu" (no diário de Joaquim Nabuco, 11-9-1877). Enfim, o Brasil de hoje.

Nessa publicação recolhem-se, em dez ensaios, visões e interpretações decisivas da cultura, da sociedade e da política do Brasil contemporânea. Estudos escritos em momentos e circunstâncias diversas, podem ser lidos separadamente, embora interligados pela obsessão de seu autor em explicar o sentido de nossa história, das "raízes" à atualidade. Bem escrito, em tom ensaístico, mas direto, a obra possui, além de outras qualidades, a de oferecer aos menos familiarizados ou "esquecidos" de nossos clássicos sólido roteiro para atualização de sua formação, e aqui incluo professores, profissionais liberais e "neoliberais" (?) como também jovens jornalistas e antigos sindicalistas, desacorçoados com as lutas de classes.

Acompanhado no fim de listagem de obras que inventaram o Brasil e de esclarecedor posfácio do historiador José Murilo de Carvalho, a obra condensa os diálogos intelectuais, políticos e até filosóficos que o ex-presidente manteve com alguns de nossos principais formadores, como os escolhidos na seleção seus interlocutores Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, Antonio Candido, Florestan Fernandes, Celso Furtado e Raymundo Faoro. E sobretudo do grande "formador" Gilberto Freyre, a quem FHC dedica o segundo melhor ensaio do livro (o primeiro é sobre seu mestre e ex-catedrático Florestan), de modo que honrou seu campo de conhecimento, ao tratar dos nossos dois maiores sociólogos-historiadores do século XX brasileiro.

FHC escolheu pensadores-pesquisadores que foram, de algum modo, homens de ação e voltados ao tempo presente, que iluminaram o caminho que o levou, rapazote ainda na década de 1940, do Colégio Estadual Presidente Roosevelt, onde, orientado por professores de excelência, a ler Euclides da Cunha, Freyre e Caio Prado, à antiga Faculdade de Filosofia da USP da rua Maria Antônia, já na década de 1950. Na Maria Antônia, como aluno e professor, redescobriu o Brasil com Buarque, Candido, Fernando de Azevedo, Florestan e (talvez menos) Paulo Prado, mas também o vasto mundo das ciências humanas, de Marx, Weber, Mannheim, Durkheim, Sartre e inúmeros outros intelectuais. E logo conheceu homens de Estado, como Furtado, principal formulador das teorias do desenvolvimento e subdesenvolvimento, de pré-revolução e reforma. Teorias e práxis que o levaram ao exílio após o golpe de 1964, onde descobriu a América Latina, a Cepal (Comissão Econômica para a América Latina) de Raúl Prebisch, respirou os novos ares do marxismo e do mundo e elaborou, com outros cientistas sociais, as teorias da dependência.

A partir de então aprofundou pesquisas e iniciou diálogo com os principais intelectuais e políticos de nosso tempo. Bom articulador e sempre juntando peças do quebra-cabeça brasileiro, não conseguiu, porém, fazer com que Caio e Furtado se entendessem... O fato é que FHC proferiu incontáveis conferências aqui e no exterior e muito polemizou: em larga medida, sua obra deriva e se alimenta de aulas, conferências e desses debates, confrontos e revisões.

Após descobrir o tamanho do mundo e circular pelos principais centros universitários mundiais, retornou ao país, envolveu-se na resistência à ditadura e, depois, na busca de um novo modelo político para o Brasil. Envolveu-se nas campanhas pela redemocratização do país (com o mesmo vigor que participara da campanha pela escola pública nos anos 60 e da Sociedade para o Progresso da Ciência nos anos de chumbo), incrementou seu "côté" publicista e, não surpreendentemente, após a senatoria e o Ministério de Relações Exteriores, conquistou a Presidência, mercê do mais acabado programa de recuperação nacional até então aplicado no país: o Plano Real, que, aliás, daria fôlego e seria malbaratado nos governos seguintes.

O título do livro indica com clareza o foco: pensadores que inventaram o Brasil, nada banal, pois a construção de um Estado e de uma cultura democrática moderna implica sofisticada arquitetura intelectual para embasá-los. Dir-se-ia "cum granum salis" que o problema também é o design do Estado brasileiro, dada a rudeza do universo político-cultural em que vicejam Renans, mais a carência de Estadistas (com E maiúsculo), o que dá razão ao historiador Caio Prado em seu mais duro diagnóstico. O historiador, com quem FHC manteve relações até o fim da vida, dizia que "o Brasil é um país muito atrasado". E, depois de mais refletir, repetia: "Muito atrasado".

Três ensaios sobre Nabuco abrem a coletânea, em que o leitor encontrará uma síntese do perfil do estadista, seu "olhar latino-americano" e uma análise aguda de sua ideologia democrática. FHC inclui na conversa clássicos como Tocqueville e Thiers, e historiadores, como nosso contemporâneo Murilo de Carvalho. Talvez seja este o estudo com o qual FHC mais se identifique e apareça de corpo inteiro, pois o autor de "Minha Formação" também era filho de político, preocupava-se com sua formação intelectual e cultivava suave postura de conciliador político (apesar de abolicionista consequente). Outra semelhança: Nabuco, "charmeur" e, não por acaso, apelidado de Quincas o Belo, destacava-se por bem administrado narcisismo, compreensível até, pois era talentoso e culto. Faoro, outro intérprete do Brasil analisado no livro, observou-me certa vez, sem a ironia habitual, que Fernando Henrique revela "traços de estadista da estirpe de Nabuco".

Por fim, acrescente-se que Nabuco não era homem de posses, como tampouco FHC e seu pai general o foram, ao menos nos inícios de vida. Em seu governo, Fernando Henrique inaugurou a Cátedra Nabuco na Universidade Stanford (Califórnia), pela qual passaram Freyre e Oliveira Lima e José Murilo. Penso, todavia, que, no denso estudo de FHC, caberia comentário ao célebre discurso de Nabuco sobre a "ponte de ouro", em que o estadista propôs, em conjuntura de grave crise nacional, que liberais e conservadores dessem as mãos e estabelecessem "ponte" para salvação da pátria. O que FHC, os tucanos e os petistas tampouco jamais conseguiram. Enfim...

Mais solto, porém sutil, é o ensaio sobre Paulo Prado, o mecenas modernista paulistano, a meu ver o Lampedusa brasileiro. Se indica em sua obra "Retrato do Brasil" os limites e a graça do "método" impressionista, já a obra de Freyre merece análise mais acurada e aguda, apontando pontos vulneráveis nas teorias do grande escritor, a começar pelo "ecletismo metodológico e o quase embuste do mito da democracia racial" e da "ausência de conflitos entre as classes" por conta da "plasticidade e do hibridismo inato que teríamos herdado dos ibéricos". Vale a menção ao cientista político e diplomata Tarcísio Costa, que o alertou quanto "às razões de pinimbas que muitos de nós, acadêmicos, temos com Freyre". Mas poderia ter insistido em que Freyre inaugurou em suas obras toda a pauta que seria a da badalada École des Annales, com os tais "novos" objetos, como habitação, alimentação, sexualidade, ecologia.

O leitor poderá acompanhar o caminho percorrido e o método pelo qual FHC foi construindo ao longo da vida, dialeticamente, sua teoria do Brasil, para distinguir a soma do resto. Na soma, Buarque e seu culturalismo, Caio Prado e as lutas de classes, em Candido o professor-pesquisador, em Florestan a requalificação do intelectual, em Furtado o rigor e a continência crítica, em Faoro a complexidade do Estado patrimonialista. Mas o resto é enorme, e vale aguardar um segundo volume em que as obras de Manoel Bomfim, Darcy Ribeiro, Roger Bastide, Eduardo Portella, Cruz Costa, Sérgio Milliet, Manuel Correia de Andrade, José Honório Rodrigues, Dante Moreira Leite e tantos outros "explicadores" tenham lugar. Todos compõem a "forma mentis" desse estadista que escreveu o notável "Arte da Política".

"Homo politicus", sabe o que é "virtù". Rodeou-se de intelectuais de peso, como Pedro Malan, escolhido para o Ministério da Fazenda, Celso Lafer (Relações Exteriores) e Miguel Reale Júnior (Justiça). Vale notar que o trânsito de FHC da academia para o publicismo, tanto na imprensa escrita quanto na eletrônica, encorajou professores a sair de seus guetos para o debate público. Até então, "jornalismo era coisa para jornalistas", quando se registrava preconceito destes em relação aos universitários. Não sem alguma razão, pois o mundo universitário, quando ainda não havia escolas superiores de jornalismo, mantinha distância e certo desprezo em relação à "classe média" jornalística: para os universitários de novo perfil abria-se exceção apenas nos jornais em que os publishers eram e gostavam por assim dizer de "gente fina". FHC atravessou essa fronteira, pela senda aberta por Florestan, e se beneficiou, como muitos de nós, dos contatos do "sans-culotte" assistente do professor Fernando de Azevedo com o elegante girondino doutor Julinho de Mesquita Filho, via Paulo Duarte, jornalista jacobino, que também cultivavam o gosto aristocrático pelo popular.

Finalmente, uma nota pitoresca: copo na mão, Buarque, durante uma festa acadêmica de defesa de tese, aproxima-se do saudoso Bento Prado Júnior, bom de filosofia e de copo, e pergunta-lhe: "O Fernando Henrique, que está ali num canto, você confia nele?" Bento, atônito, admira-se: "Claro, por quê?" O historiador responde, com ceticismo: "Eu não confio em quem não bebe..." E saíram os dois dançando, com copo na mão.
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* Carlos Guilherme Mota, historiador, professor emérito da USP e autor de "Ideologia da Cultura Brasileira de História do Brasil" (em coautoria com Adriana Lopez)

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