Carlos Guilherme Mota*
"Onde o Brasil?", perguntava Carlos Drummond de Andrade em conhecido e
denso verso. A seca indagação nos transporta para além do óbvio e
solicita nova reflexão. Readquire significado nesta hora em que a
sociedade brasileira parece querer se descobrir em "manifestações de
rua", expressão que alcança, ela também, novo significado.
Hora de acordar, pois, ao lado de uma elite nem tão educada, surgem
"rebeldes primitivos" anunciados, sobretudo oriundos do setor de
serviços e escolar, que procuram fazer-se ouvir, por vezes
tartamudeando, dado o enorme vácuo de formação e de boas escolas e
universidades, característica deste país nos últimos anos. É a tal
"carência mental" que, sob o nazismo, agoniava Karl Mannheim. Ou seja,
vive-se a sociedade precária na qual o que entendíamos por "educação"
política é marcada pela abstinência de leituras, o que explica por que,
no atual quadro, a perspectiva histórica se tornou rala e rudimentar a
sociologia, em mar de palpites sobre "classe média", "desenvolvimento
sustentável", "neocapitalismo", "globalização", "sociedade em rede",
"pós-modernidade".
Para além desse caldeirão de conceitos mal cozidos, multidões saem às
ruas nessa magnífica mistura de frações sociais, em busca de algum
horizonte histórico-cultural que lhes permita (quando menos) ensaiar
participação e inclusão na cidadania, ainda que utopicamente como em 68,
na invenção de sua/nossa história. Que deseja tal multidão?, perguntará
o leitor. Resposta: respeito, transparência na política e na vida
pública. E transitar da condição precária de súditos-contribuintes à de
cidadãos ativos e válidos.
Nesse contexto, "Pensadores Que Inventaram o Brasil" (Companhia das
Letras, 329 págs., R$ 39,50), que Fernando Henrique Cardoso acaba de
lançar, torna-se importante, por analisar e "conversar" com estadistas e
intelectuais que procuraram inventar ou reinventar o Brasil. Atualidade
plena, pois, como diria Joaquim Nabuco, um dos estadistas estudados por
FHC, "muitas vezes um país percorre um longo caminho para voltar,
cansado e ferido, ao ponto donde partiu" (no diário de Joaquim Nabuco,
11-9-1877). Enfim, o Brasil de hoje.
Nessa publicação recolhem-se, em dez ensaios, visões e interpretações
decisivas da cultura, da sociedade e da política do Brasil
contemporânea. Estudos escritos em momentos e circunstâncias diversas,
podem ser lidos separadamente, embora interligados pela obsessão de seu
autor em explicar o sentido de nossa história, das "raízes" à
atualidade. Bem escrito, em tom ensaístico, mas direto, a obra possui,
além de outras qualidades, a de oferecer aos menos familiarizados ou
"esquecidos" de nossos clássicos sólido roteiro para atualização de sua
formação, e aqui incluo professores, profissionais liberais e
"neoliberais" (?) como também jovens jornalistas e antigos
sindicalistas, desacorçoados com as lutas de classes.
Acompanhado no fim de listagem de obras que inventaram o Brasil e de
esclarecedor posfácio do historiador José Murilo de Carvalho, a obra
condensa os diálogos intelectuais, políticos e até filosóficos que o
ex-presidente manteve com alguns de nossos principais formadores, como
os escolhidos na seleção seus interlocutores Sérgio Buarque de Holanda,
Caio Prado Júnior, Antonio Candido, Florestan Fernandes, Celso Furtado e
Raymundo Faoro. E sobretudo do grande "formador" Gilberto Freyre, a
quem FHC dedica o segundo melhor ensaio do livro (o primeiro é sobre seu
mestre e ex-catedrático Florestan), de modo que honrou seu campo de
conhecimento, ao tratar dos nossos dois maiores sociólogos-historiadores
do século XX brasileiro.
FHC escolheu pensadores-pesquisadores que foram, de algum modo,
homens de ação e voltados ao tempo presente, que iluminaram o caminho
que o levou, rapazote ainda na década de 1940, do Colégio Estadual
Presidente Roosevelt, onde, orientado por professores de excelência, a
ler Euclides da Cunha, Freyre e Caio Prado, à antiga Faculdade de
Filosofia da USP da rua Maria Antônia, já na década de 1950. Na Maria
Antônia, como aluno e professor, redescobriu o Brasil com Buarque,
Candido, Fernando de Azevedo, Florestan e (talvez menos) Paulo Prado,
mas também o vasto mundo das ciências humanas, de Marx, Weber, Mannheim,
Durkheim, Sartre e inúmeros outros intelectuais. E logo conheceu homens
de Estado, como Furtado, principal formulador das teorias do
desenvolvimento e subdesenvolvimento, de pré-revolução e reforma.
Teorias e práxis que o levaram ao exílio após o golpe de 1964, onde
descobriu a América Latina, a Cepal (Comissão Econômica para a América
Latina) de Raúl Prebisch, respirou os novos ares do marxismo e do mundo e
elaborou, com outros cientistas sociais, as teorias da dependência.
A partir de então aprofundou pesquisas e iniciou diálogo com os
principais intelectuais e políticos de nosso tempo. Bom articulador e
sempre juntando peças do quebra-cabeça brasileiro, não conseguiu, porém,
fazer com que Caio e Furtado se entendessem... O fato é que FHC
proferiu incontáveis conferências aqui e no exterior e muito polemizou:
em larga medida, sua obra deriva e se alimenta de aulas, conferências e
desses debates, confrontos e revisões.
Após descobrir o tamanho do mundo e circular pelos principais centros
universitários mundiais, retornou ao país, envolveu-se na resistência à
ditadura e, depois, na busca de um novo modelo político para o Brasil.
Envolveu-se nas campanhas pela redemocratização do país (com o mesmo
vigor que participara da campanha pela escola pública nos anos 60 e da
Sociedade para o Progresso da Ciência nos anos de chumbo), incrementou
seu "côté" publicista e, não surpreendentemente, após a senatoria e o
Ministério de Relações Exteriores, conquistou a Presidência, mercê do
mais acabado programa de recuperação nacional até então aplicado no
país: o Plano Real, que, aliás, daria fôlego e seria malbaratado nos
governos seguintes.
O título do livro indica com clareza o foco: pensadores que
inventaram o Brasil, nada banal, pois a construção de um Estado e de uma
cultura democrática moderna implica sofisticada arquitetura intelectual
para embasá-los. Dir-se-ia "cum granum salis" que o problema também é o
design do Estado brasileiro, dada a rudeza do universo
político-cultural em que vicejam Renans, mais a carência de Estadistas
(com E maiúsculo), o que dá razão ao historiador Caio Prado em seu mais
duro diagnóstico. O historiador, com quem FHC manteve relações até o fim
da vida, dizia que "o Brasil é um país muito atrasado". E, depois de
mais refletir, repetia: "Muito atrasado".
Três ensaios sobre Nabuco abrem a coletânea, em que o leitor
encontrará uma síntese do perfil do estadista, seu "olhar
latino-americano" e uma análise aguda de sua ideologia democrática. FHC
inclui na conversa clássicos como Tocqueville e Thiers, e historiadores,
como nosso contemporâneo Murilo de Carvalho. Talvez seja este o estudo
com o qual FHC mais se identifique e apareça de corpo inteiro, pois o
autor de "Minha Formação" também era filho de político, preocupava-se
com sua formação intelectual e cultivava suave postura de conciliador
político (apesar de abolicionista consequente). Outra semelhança:
Nabuco, "charmeur" e, não por acaso, apelidado de Quincas o Belo,
destacava-se por bem administrado narcisismo, compreensível até, pois
era talentoso e culto. Faoro, outro intérprete do Brasil analisado no
livro, observou-me certa vez, sem a ironia habitual, que Fernando
Henrique revela "traços de estadista da estirpe de Nabuco".
Por fim, acrescente-se que Nabuco não era homem de posses, como
tampouco FHC e seu pai general o foram, ao menos nos inícios de vida. Em
seu governo, Fernando Henrique inaugurou a Cátedra Nabuco na
Universidade Stanford (Califórnia), pela qual passaram Freyre e Oliveira
Lima e José Murilo. Penso, todavia, que, no denso estudo de FHC,
caberia comentário ao célebre discurso de Nabuco sobre a "ponte de
ouro", em que o estadista propôs, em conjuntura de grave crise nacional,
que liberais e conservadores dessem as mãos e estabelecessem "ponte"
para salvação da pátria. O que FHC, os tucanos e os petistas tampouco
jamais conseguiram. Enfim...
Mais solto, porém sutil, é o ensaio sobre Paulo Prado, o mecenas
modernista paulistano, a meu ver o Lampedusa brasileiro. Se indica em
sua obra "Retrato do Brasil" os limites e a graça do "método"
impressionista, já a obra de Freyre merece análise mais acurada e aguda,
apontando pontos vulneráveis nas teorias do grande escritor, a começar
pelo "ecletismo metodológico e o quase embuste do mito da democracia
racial" e da "ausência de conflitos entre as classes" por conta da
"plasticidade e do hibridismo inato que teríamos herdado dos ibéricos".
Vale a menção ao cientista político e diplomata Tarcísio Costa, que o
alertou quanto "às razões de pinimbas que muitos de nós, acadêmicos,
temos com Freyre". Mas poderia ter insistido em que Freyre inaugurou em
suas obras toda a pauta que seria a da badalada École des Annales, com
os tais "novos" objetos, como habitação, alimentação, sexualidade,
ecologia.
O leitor poderá acompanhar o caminho percorrido e o método pelo qual
FHC foi construindo ao longo da vida, dialeticamente, sua teoria do
Brasil, para distinguir a soma do resto. Na soma, Buarque e seu
culturalismo, Caio Prado e as lutas de classes, em Candido o
professor-pesquisador, em Florestan a requalificação do intelectual, em
Furtado o rigor e a continência crítica, em Faoro a complexidade do
Estado patrimonialista. Mas o resto é enorme, e vale aguardar um segundo
volume em que as obras de Manoel Bomfim, Darcy Ribeiro, Roger Bastide,
Eduardo Portella, Cruz Costa, Sérgio Milliet, Manuel Correia de Andrade,
José Honório Rodrigues, Dante Moreira Leite e tantos outros
"explicadores" tenham lugar. Todos compõem a "forma mentis" desse
estadista que escreveu o notável "Arte da Política".
"Homo politicus", sabe o que é "virtù". Rodeou-se de intelectuais de
peso, como Pedro Malan, escolhido para o Ministério da Fazenda, Celso
Lafer (Relações Exteriores) e Miguel Reale Júnior (Justiça). Vale notar
que o trânsito de FHC da academia para o publicismo, tanto na imprensa
escrita quanto na eletrônica, encorajou professores a sair de seus
guetos para o debate público. Até então, "jornalismo era coisa para
jornalistas", quando se registrava preconceito destes em relação aos
universitários. Não sem alguma razão, pois o mundo universitário, quando
ainda não havia escolas superiores de jornalismo, mantinha distância e
certo desprezo em relação à "classe média" jornalística: para os
universitários de novo perfil abria-se exceção apenas nos jornais em que
os publishers eram e gostavam por assim dizer de "gente fina". FHC
atravessou essa fronteira, pela senda aberta por Florestan, e se
beneficiou, como muitos de nós, dos contatos do "sans-culotte"
assistente do professor Fernando de Azevedo com o elegante girondino
doutor Julinho de Mesquita Filho, via Paulo Duarte, jornalista jacobino,
que também cultivavam o gosto aristocrático pelo popular.
Finalmente, uma nota pitoresca: copo na mão, Buarque, durante uma
festa acadêmica de defesa de tese, aproxima-se do saudoso Bento Prado
Júnior, bom de filosofia e de copo, e pergunta-lhe: "O Fernando
Henrique, que está ali num canto, você confia nele?" Bento, atônito,
admira-se: "Claro, por quê?" O historiador responde, com ceticismo: "Eu
não confio em quem não bebe..." E saíram os dois dançando, com copo na
mão.
---------------------------- * Carlos Guilherme Mota, historiador, professor emérito da USP e autor de "Ideologia da Cultura Brasileira de História do Brasil" (em coautoria com Adriana Lopez)
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