WASHINGTON, NOVAES*
Hélio Pellegrino
"Por que é que o tempo carrega consigo não sei que
misterioso germe, que aos poucos vai nos dando a impressão de que
crescemos, e nos dilatamos, quando na verdade nos dissolvemos,
nos liquefazemos, nos perdemos. Por que é que o tempo não é apenas o ar que nos envolve,
numa marcha luminosa
nos liquefazemos, nos perdemos. Por que é que o tempo não é apenas o ar que nos envolve,
numa marcha luminosa
para a imperecível unidade?"
Esse trecho de uma carta escrita aos 22 anos de idade, em 1946, pelo
poeta, escritor, jornalista, psicanalista Hélio Pellegrino a seu amigo
Otto Lara Resende (Lucidez Embriagada, organização de Antônia
Pellegrino, Planeta, 2004) é uma amostra do pensamento candente e
brilhante que carregou e expandiu pela vida afora e que o teria
conduzido, nesta semana, aos 89 anos de idade, se estivesse vivo (morreu
em 1985). Hélio foi uma das pessoas mais brilhantes do seu tempo, homem
de muitas paixões, engajado até o fundo de sua alma em todas as
questões que o cercavam, em todas as áreas. E sempre envolvido num
diálogo admirável com seus três amigos de adolescência - Otto Lara
Resende, Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos, "os quatro mineiros",
como eram chamados.
Fundador, ao lado de Mário Pedrosa, do PT (que pensaria hoje do
partido que ajudou a criar?), Hélio teve participação decisiva também
nos episódios pós-movimento militar de 1964 e fez parte da Comissão dos
Cem Mil, aclamada pelos participantes, que foi negociar com o presidente
Costa e Silva, no Palácio do Planalto, a libertação dos presos
políticos. Ali, o confronto começou logo na portaria, quando os
vigilantes quiseram impedir a entrada dos estudantes que eram membros da
comissão, alegando que não usavam gravata. Hélio imediatamente retirou a
sua e retrucou: "Não têm gravata, mas têm dignidade". Entraram. Mas
quando general-presidente se retirou da sala, indignado com as
exigências, e o chefe da Casa Militar advertiu "vocês vieram cutucar a
onça com vara curta", Hélio não perdeu um segundo para a resposta:
"Coronel, nós já conversamos com o dono da porcada; é só".
Já na mira da repressão, por seus artigos candentes na imprensa, e
chamado de "psicanalista dos comunistas", também em artigos, pelo
escritor, seu amigo e compadre Nelson Rodrigues, Hélio esteve preso
durante meses e só não foi condenado a anos de prisão, num Inquérito
Policial-Militar (IPM), porque Otto convenceu Nelson a depor a favor do
réu, alegando que o qualificativo que usava era apenas "expressão
literária".
Até no terreno da psicanálise Hélio provocou crise, ao denunciar,
numa reunião da sociedade de que fazia parte, o acumpliciamento silente
desta com a ditadura e até com a presença, em seus quadros, de um
participante de torturas, já denunciado pela também psicanalista Helena
Besserman Vianna. O episódio custou a Hélio e ao também psicanalista
Eduardo Mascarenhas uma expulsão temporária da sociedade.
Ele não separava a psicanálise das vivências do cotidiano, sociais ou
políticas. Juntamente com a psicanalista Catarina Kemper, sua mestra e
de tantos outros, criou a Clínica Social de Psicanálise do Rio de
Janeiro, onde os profissionais dedicavam algumas horas por semana a
atender, sem remuneração, pessoas que não podiam pagar. Essa
solidariedade a todos os seres é marca de seus escritos, como aquele em
que, referindo-se a Tristão de Athayde, sentencia que "o processo de
encarnação da fé cristã (...) é fulcro da vida: o cristão só o é, em
profundidade, através do Próximo concreto. Não há cristão fechado na
abastança narcísica, na contemplação solitária das verdades externas. O
relâmpago da eternidade capaz de aparecer no tempo só fulgura através da
presença carnal do Outro, em suas alegrias e sofrimentos. É,
principalmente, no amor ao ser humano que sofre que se pode distinguir a
marca do cristão autêntico".
Que pode haver de mais estimulante, mais atual, de maior chamamento
aos jovens de hoje, perdidos em tantas confusões do mundo moderno, do
que palavras como estas? "Ser jovem é florescer na força de sua
originalidade própria. E, para tanto, é necessário trabalhar e sofrer,
vigiar e orar, despir-se do conforto das verdades já feitas para ousar a
invenção do caminho próprio." Neste mundo em que 1 bilhão de pessoas
passam fome, 40% vivem abaixo da linha da pobreza, não pode haver
palavras mais esperançosas que estas: "O sinal da Igreja de nosso tempo é
a solidariedade para com os explorados, os oprimidos, os humilhados, os
ofendidos. (...) O cristão, hoje em dia, é um ser que luta contra a
alienação, o conformismo, a desistência, a desesperança, a indiferença, a
ignorância. O cristão quer devolver a cada ser humano o inalienável
direito de ser livre. Ou melhor: o cristão quer devolver a cada ser
humano o duro e alto privilégio de tornar-se livre e responsável". Sem
se iludir, pois a liberdade "não é uma abstração teórica: é pão e vinho,
terra e teto, direito e dever - distribuídos igualmente".
O autor destas linhas teve o privilégio de conviver com Hélio
Pellegrino durante 20 anos. Muito antes, entretanto, ainda estudante de
Direito, encontrou-se com um texto de carta do Hélio que Fernando Sabino
colocou na introdução de seu livro O Encontro Marcado: "O homem, quando
jovem, é só, apesar de suas múltiplas experiências. Ele pretende, nessa
época, conformar a realidade com suas mãos, servindo-se dela, pois
acredita que, ganhando o mundo, conseguirá ganhar-se a si próprio.
Acontece, entretanto, que nascemos para o encontro com o outro, e não
para o seu domínio. Encontrá-lo é perdê-lo, é contemplá-lo na sua
libérrima existência, é respeitá-lo e amá-lo na sua total e gratuita
inutilidade. (...) Feliz daquele que, ao meio-dia, se percebe em plena
treva, pobre e nu. Esse é o preço do encontro, do possível encontro com o
outro".
Trinta anos mais tarde, este escriba recebeu, numa carta do Hélio,
palavras que valem uma vida: "Nosso encontro é uma prova, modesta porém
eloquente, do encontro, do possível encontro com o outro".
Ave, Hélio.
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* JORNALISTA, E-MAIL: WLRNOVAES@UOL.COM.BR - O Estado de S.Paulo
Fonte: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,palavras-de-um-poeta-para-o-mundo-de-hoje-,980397,0.htm
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