João Pereira Coutinho*
1. Os americanos vão hoje às urnas. Não sou vidente. Não vou cansar o leitor com análises detalhadas sobre os "swing states", os votos colegiais, as últimas pesquisas. Tudo é possível.
Mas, dentro do possível, confesso que gostaria muito que Mitt Romney
ganhasse. Eu sei, heresia: lemos a imprensa "liberal" (no sentido
americano da palavra, ou seja, esquerdista) e Romney é apresentado como
um fanático que acredita em extraterrestres. Pior: um fanático que
pretende entregar os Estados Unidos à plutocracia doméstica, de que ele
faz parte.
Barack Obama, pelo contrário, é a personificação da bondade e do
realismo. Mesmo Guantánamo, que continua a funcionar, tem outro sabor
com Obama: no tempo de Bush, a prisão era o inferno terreno e a prova da
malignidade republicana. Com Obama, Guantánamo é um jardim de infância.
Sejamos sérios: o julgamento sobre Obama, quatro anos depois, não pode
ser brando ou entusiasmante. Fato: em 2008, Obama recebeu de herança uma
nação quebrada. Novo fato: em 2008, Obama dispunha de condições
incomparáveis --aprovação popular em níveis estratosféricos, Congresso
favorável etc.-- para fazer mais e melhor.
Não fez. Um crescimento econômico que se arrasta penosamente nos 2% é
tímido, para usar um eufemismo. O desemprego perto dos 8% seria o
suficiente para que ele perdesse a reeleição. E a República, agravando o
desvario iniciado por George W. Bush, continua dramaticamente
endividada --e a endividar-se.
Como escreveu certeiramente Tim Stanley, no "Daily Telegraph", o
problema de Obama não é ser o anti-Bush. É, ironia das ironias, repetir
os erros de Bush ao permitir um Estado sem controle na despesa e
disposto a infiltrar-se na vida comum do cidadão comum.
É por isso que a eleição de hoje não é apenas mais uma eleição na
história da América. É, como afirma Romney e sobretudo o seu candidato a
vice, Paul Ryan, uma espécie de plebiscito sobre o tipo de sociedade
que a América pretende ser no século 21.
Para Obama, o ideal seria que a América se aproximasse da Europa e do modelo de bem-estar social.
Infelizmente, alguém deveria explicar ao presidente Obama que a crise
corrente que ameaça destroçar a União Europeia está diretamente
relacionada com a insustentabilidade desse modelo social.
Cuidado, América: para Europa, já basta a que temos.
2. E por falar em Europa: leio no "Times Literary Supplement" uma passagem notável das memórias de Madame de Staël.
Conto rápido: já depois da Revolução de 1789, o ministro de guerra Louis de Narbonne-Lara discursava na Assembleia Legislativa.
A páginas tantas, o infeliz ministro introduziu no discurso a expressão
"apelo aos mais distintos membros desta Assembleia". Foi a revolta
geral, com os jacobinos a relembrarem ao ministro que, naquela
Assembleia, todos os membros eram igualmente distintos.
A história é interessante para conhecermos a cabeça do fanatismo
igualitário em ação. Mas mais interessante é a observação de Madame de
Staël: "para os jacobinos", escreve ela, "a aristocracia de talento era
tão repugnante como a aristocracia de berço".
Relembro esta história, hoje, ao saber que na mesma França da Bastilha o
presidente François Hollande pretende banir do sistema educativo os
deveres de casa.
Corrijo: Hollande não quer banir os deveres. Pretende apenas que eles
sejam integralmente realizados na escola, não em casa. Isso permitirá
que as diferenças socioeconômicas das famílias não tenham qualquer
interferência no respectivo mérito escolar dos filhos. Todos iguais,
todos na escola.
Claro que, para sermos perversos, poderíamos perguntar ao senhor
presidente o que tenciona ele fazer se alguns alunos, em manifesto
desrespeito igualitário, violarem a medida. Como?
Estudando na escola e, depois, estudando um pouco mais em casa, ou nos cafés, ou nas bibliotecas. Será permitida essa busca da excelência extracurricular?
Estudando na escola e, depois, estudando um pouco mais em casa, ou nos cafés, ou nas bibliotecas. Será permitida essa busca da excelência extracurricular?
Ou o Estado francês, em nome da igualdade, também pretende instalar um
policial em cada casa, café ou biblioteca, disposto a vigiar e punir o
mais leve sintoma de curiosidade intelectual?
Esperemos pelas cenas dos próximos capítulos.
---------------
* João Pereira Coutinho, escritor português, é doutor em Ciência
Política. É colunista do "Correio da Manhã", o maior diário português.
Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Record).
Escreve às terças na versão impressa de "Ilustrada" e a cada duas
semanas, às segundas, no site.
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/joaopereiracoutinho/1180731-dos-estados-unidos-a-europa.shtml 06/11/2012
Nenhum comentário:
Postar um comentário