Fernando Reinach*
Incapaz de convencer jovens médicos a trabalhar no SUS, o
governo federal resolveu criar um novo profissional, o meio médico meio
escravo. Esse profissional, inspirado nos mitológicos centauros e na
famosa meia muçarela meia calabresa, virá em duas versões, nacional e
importado. É a pizza que vai ser servida no SUS.
Durante anos dei aula para os calouros da Faculdade de Medicina da
USP. Eram jovens que haviam escolhido uma profissão em que a derrota é
certa. Ninguém consegue escapar da morte. Ingenuamente arrogantes e
prepotentes, algo compreensível em quem sempre foi o melhor aluno,
sobreviveu dois anos de cursinho, e se classificou entre os 300 melhores
no vestibular mais competitivo, acreditavam que se tornando médicos
curariam doenças letais, mitigariam o sofrimento, descobririam novos
remédios e, lutando contra o único inimigo realmente invencível,
ajudariam a humanidade. Durante os dois primeiros anos de curso, a maior
dificuldade era mantê-los longe do hospital. Bastava surgir a
oportunidade de participar em alguma atividade que envolvesse pacientes e
a frequência nas minhas aulas de bioquímica minguava. Isso não era um
problema, aqueles alunos aprendiam sozinhos.
Mas nos anos seguintes a realidade desabava sobre a cabeça dos
alunos. O primeiro cadáver dissecado, cenas de sofrimento, a primeira
morte observada de perto, a primeira parada cardíaca que não consegui
reverter, um erro que só não foi fatal porque um supervisor estava
atento. A primeira noite no pronto-socorro, uma lâmpada quebrada dentro
da vagina de uma paciente. Na década de 80 ano, um aluno se suicidava
todo ano. Hoje existe na Medicina da USP um serviço dedicado
exclusivamente a ajudar os alunos a enfrentar a impotência e o convívio
com o sofrimento e a morte.
Mas a realização do sonho também aparece, sofrimentos são amenizados,
situações desesperadoras são revertidas. Aos poucos, os alunos percebem
que a medicina moderna é poderosa, mas complexa. Com conhecimento
teórico, muita prática e um trabalho coordenado de toda a equipe, o
sonho pode se tornar realidade.
A arrogância do calouro que acreditava que se bastava, que o sucesso
dependia somente de sua dedicação e esforço, desaparece. Ele aprende que
o bom médico, sem recursos diagnósticos e equipamentos, sem leitos
hospitalares, sem remédios, sem enfermeiros, sem fisioterapeutas, sem
nutricionistas e sem um processo de gestão sofisticado e ágil, vai
praticar uma medicina medíocre.
Doenças que poderiam ser curadas pioram, doenças controláveis
progridem rapidamente e mortes que poderiam ser evitadas ocorrem
frequentemente. Aprendem que o médico é somente uma peça importante do
sistema de saúde. Esse aprendizado não é teórico, os alunos trabalham no
caos semiorganizado do Hospital das Clínicas, fazem estágios em outros
hospitais públicos e em centros de saúde. Ao terminar o curso, eles
sabem que praticar a medicina sem suporte é tão difícil quanto jogar
tênis sem raquete.
Para os recém-formados, a frustração mais difícil de tolerar é não
praticar a medicina que aprenderam por falta de infraestrutura. Muitos,
incapazes de suportar a impotência diante de pacientes que voltam piores
por falta de remédio, frustrados diante de pacientes que não podem ser
tratados por falta de resultados de diagnósticos, ou desesperados com a
visão de filas infinitas, abandonam a prática médica. Outros, apesar de
despreparados para tarefas administrativas, se tornam gestores na
esperança de melhorar a infraestrutura pública. Vários preferem
trabalhar em hospitais de elite, onde a infraestrutura é quase perfeita.
Alguns desenvolvem uma casca mais grossa e aceitam fazer o que é
possível, tolerando a frustração. E é claro que há os que se aproveitam
da bagunça para fingir que trabalham e receber o salário no final do
mês.
Não é de se espantar que nos últimos anos os serviços públicos não
tenham conseguido atrair médicos para trabalhar nos postos de saúde e
hospitais onde as condições de trabalho são piores. Os salários foram
aumentados, mas a maioria dos médicos recusa um emprego fixo de R$ 10
mil em um local sem infraestrutura. O experimento não foi levado
adiante, mas seria interessante saber o salário necessário para
convencer os melhores alunos de nossas melhores universidades a venderem
seus sonhos.
Melhorar as condições de trabalho é a solução óbvia. Mas isso exige
que o governo assuma a culpa e deixe de empurrar o problema com a
barriga. Mais fácil é culpar os jovens médicos, pouco patrióticos, que
só pensam em dinheiro e se recusam a trabalhar em um sistema público de
saúde bem organizado, eficiente, sem filas e tão bem avaliado pela
população.
Diálogo no Planalto: "A solução é forçar os médicos a trabalhar onde
queremos. Mas como é possível forçar alguém que possui um CRM e portanto
o direito de praticar sua profissão em qualquer lugar do País? Fácil,
basta criar um CRM provisório, que só permite ao recém-formado clinicar
no local designado. Cumprida a missão, liberamos o CRM definitivo. Mas
isso não é uma forma de coerção? Não se preocupe, o trabalho cívico fará
parte formal do treinamento, basta aumentar o curso em dois anos. Boa
ideia, quem escreve a medida provisória?"
No dia seguinte: "Um aluno com um CRM provisório é um médico de
verdade? Pode tratar pacientes sem supervisão? Claro que sim, senão como
ele vai trabalhar no local designado? Mas então ele não é um aluno, é
um médico escravizado. Não, escravidão é inconstitucional, ele tem de
ser também aluno, vai lá, escreve a MP, depois resolvemos esse detalhe.
Sim, chefe, mas que tal incluirmos os médicos importados na MP? Basta
dar a eles uma licença provisória para praticar a medicina no País, uma
espécie de CRM provisório atrelado ao local de trabalho. Brilhante, vai,
escreve a MP que o Diário Oficial fecha daqui a duas horas."
No terceiro dia eles descansaram. Haviam criado o meio médico, meio
escravo. A pizza que esperam servir aos manifestantes. Se tudo der
certo, agora vamos protestar na frente das Faculdades de Medicina e do
CRM, os verdadeiros culpados pela crise na saúde pública.
------------------------------
* Biólogo.
Fonte: Estadão on line, 13/07/2013
Imagem da Internet
Nenhum comentário:
Postar um comentário