JOSE
IGNACIO GONZALES FAUS é um dos maiores teólogos espanhóis, ensinando em
Barcelona. Sempre foi muito ligado à América Latina e aos teólogos
empenhados na crítica e na transformação da atual situação do mundo.
Completou 80 anos e publicou um TESTAMENTO com o quel, seguramente,
muitos cristãos concordam e se identificam. Vai ao essencial da mensagem
de Jesus, para além dos dogmas, doutrinas, teologias e tradições. É o
que se pode viver honestamente nos dias de hoje. LBoff

Leonardo Boff*
1. Desde há quase meio século, o tema da fé se enquadra, para mim,
nestas duas frases, um de um cristão e outra de um não crente. A
primeira é a profecia de Emmanuel Mounier: no futuro, os homens não se dividirão conforme acreditem ou não em Deus, mas segundo a postura que tomarem diante dos pobres. A outra é a estrofe impactante de Atahualpa Yupanki: “há coisas neste mundo mais importantes do que Deus, que um homem não cuspa sangue para que outros vivam melhor”, o que sempre tenho visto como um bom resumo do modo como Deus se revelou em Jesus Cristo (há coisas neste mundo mais importantes que eu…).
2. Esta visão da fé se estrutura em duas linhas mestres do Novo Testamento:
2.1. A primeira, em positivo, é o repetido mandamento do amor
fraterno, que não apenas o texto bíblico abarca, mas também está
presente em quase todas as religiões, embora no Novo Testamento
adquira uma harmonia particular: é um velho mandamento que se converte
em “novo”, pois resume e interpreta todos os demais mandamentos. E é um
mandamento explicitamente universal: de tal forma que não se trata
apenas de amar “meus” irmãos, mas, sim, que todos os seres humanos são
meus irmãos: o adjetivo “fraterno” não limita, mas amplia o mandamento
do amor. O “próximo” não é o próximo a você, mas aquele a quem você deve
se aproximar, disse Jesus numa parábola.
2.2. E, em negativo, a visão do dinheiro como o grande inimigo de Deus. Visão que atravessa os Evangelhos (“não podeis servir a Deus e
ao dinheiro”), os textos paulinos (“a cobiça é idolatria” e “a raiz de
todos os males é a paixão pelo dinheiro”) e os joaninos (“se alguém
possui bens da terra, vê o seu irmão passar necessidade e não o socorre,
o amor de Deus não está com ele”).
3. Este duplo resumo da minha fé (melhor que de resumo, falaria de
“coração”, pois a realidade humana abarca muitos outros aspectos) tem
hoje, após vinte séculos de distância do mundo de Jesus,
um imprescindível componente estrutural (não apenas pessoal), que não
cabe ignorar. Se a partir daqui, enxergo hoje o nosso mundo, poderia
escrever outro Manifesto que começasse: “Um espectro ronda o mundo”. Contudo, agora, falando sério (e não ironicamente, como no Manifesto do
século XIX), esse espectro, essa grande ameaça, não é o comunismo, mas o
sistema capitalista. Por mais que se fantasie com belas palavras de
liberdade ou progresso, o coração desse sistema não é mais do que a
riqueza e o poder: a riqueza que gera o poder e o poder que gera a
riqueza. É um sistema não fraternal, cujas células-mãe tendem a
conformar um mundo onde uns poucos (cada vez mais poucos) dominam a
maioria. E o momento que o nosso mundo vive, atualmente, é aquele em que
está coalhando e tomando corpo essa tendência.
Em anos anteriores, essa tendência esteve detida por dois fatores
históricos: o socialismo da União Soviética que, mesmo com todos os seus
desastres, assustou o capitalismo e o forçou a fazer algumas
concessões, e o socialismo da chamada “social-democracia”, que procurou
cumprir uma via média entre os outros dois extremos. A queda do
pseudo-império soviético colocou fim a esse equilíbrio instável e
desatou a dinâmica totalitária do capitalismo, permitindo-lhe mostrar
seu verdadeiro rosto. Não importa o que as pessoas simples perguntem:
para que querem tanto dinheiro? Para que alguém vai querer trinta e seis
milhões de litros de água, se não poderá bebê-los em toda a sua vida?…
Por mais elementares que pareçam estes tipos de perguntas, são
incompreensíveis para os narcotizados pelo deus Mamon.
A partir daqui, parece-me que nossa hora histórica marca uma tendência quase imparável, não a de “desenvolver o Terceiro Mundo”,
como era dito antes, mas a “tercermundializar” o mundo desenvolvido. Há
poucos anos, já começamos a falar de “quarto mundo” (os enclaves de
miséria no meio do primeiro), mas essa expressão vai ficando curta, e
ficará muito mais curta quando passar a crise econômica e, como um
furacão do Caribe, deixar destruída mais da metade do estado social que
acreditávamos ter conquistado. O mundo ficará reduzido a um ou dois por
cento da humanidade, imensamente rico (mesmo repletos de lutas internas
para derrubar o outro), e uma grande maioria humana submetida a uma
ditadura camuflada de grandes palavras (civilização, progresso,
desenvolvimento, liberdade…) utilizadas como justificativas para a
crueldade dessa tirania.
Não será improvável que algum dia essa maioria exploda
incontrolavelmente, mas também não será fácil, porque sempre existe esse
colchão amortecedor daqueles que não pertencem nem à minoria dos
canalhas, nem à maioria dos infra-humanos, desses que foram chamados “o
segundo terço” e que são os que mais temem perder sua posição, caindo no
abismo dos miseráveis. Eles, sem querer, podem atuar como para-raios de
uma revolução desesperada e louca. E, além disso, os tiranos contam
sempre com o antigo recurso defensivo (panem et circenses: pão e circo)
que hoje poderíamos traduzir como “Ipad e circo”.
4. Entretanto, não se trata de fazer profecias. A última conclusão
destas reflexões é que, se o dinheiro é o maior ídolo inimigo do homem, é
assim porque é o maior inimigo de Deus, revelado por Jesus.
Da mesma forma em que capitalismo e democracia são largamente
incompatíveis, capitalismo e fé cristã também são. As igrejas que
atualmente se perguntam a respeito da descristianização do Ocidente,
acabam não percebendo isto, pois elas próprias são cúmplices desse
processo, em seus organismos diretivos. Os ateus que perderam a fé
também não percebem que seja em razão desse processo, no qual eles são
apenas pequenas gotas de água de um tsunami epocal. Desta forma, o que
ficará restando do cristianismo no Ocidente será apenas um cristianismo
não cristão: fundamentalista no dogmático e servidor do dinheiro na
moral. Um cristão já anunciado em tantas seitas norte-americanas, que
são como primeiras nuvens da tormenta que acabará vindo.
5. Para terminar, não me resta nada mais do que evocar a frase de Ignacio Ellacuría, da forma como costumo reformulá-la: “uma civilização da sobriedade compartilhada” (Ellacuría dizia
uma civilização da pobreza) é a única oferta de vida que permanece para
o nosso mundo. Para crentes e para não crentes. Se não a levamos muito a
sério, talvez seja o momento de ler esses capítulos que encerram os
evangelhos, mudando todo o discurso anterior de Jesus (Marcos 13 ou Mateus 24), e começar a compreender que nem este mundo tem futuro, nem Deus pode ter lugar num mundo como este.
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Fonte: IHU de 12 de abril de 2013 ou o site Religion Digital de 12/04/2013; Veja também meu livro: Cristianismo: o mínimo do mínimo (Vozes 2012)
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