sábado, 6 de abril de 2013

Quando tudo se perdeu

Fernando Luis Schüler*

Poucos intelectuais sintetizam visões de mundo tão distintas como Mario Vargas Llosa e Slavoj Zizek. Há algo, porém, sobre o qual ambos parecem estar de acordo: vivemos uma época de mal-estar. As razões de Llosa são apresentadas em seu último livro, A Civilização do Espetáculo. A cultura rendeu-se ao entretenimento vazio, a palavra cedeu seu espaço à imagem, os intelectuais perderam seu papel crítico na sociedade. O livro de papel irá desaparecer e com ele muito do encanto originário da literatura.

Zizek vê coisas muito piores, em seu Vivendo o Fim dos Tempos. Ele enxerga um crescimento explosivo das exclusões sociais, mundo afora, e percebe o avanço da tecnologia, da biogenética à computação em nuvem, como uma enorme conspiração (não compreendi exatamente de quem) que levará todo o sistema ao “ponto zero apocalíptico”. A expressão me soou um pouco obscura. Imagino que seja uma metáfora.

Estas leituras me fizeram lembrar da visita que fiz, tempos atrás, ao sociólogo Zigmunt Bauman, em sua casa na periferia de Leeds, na Inglaterra. Bauman mostrava sua imensa casa solitária, repleta de livros e memórias da esposa Janina. “Encontro-a em toda parte”, confidenciou, a certa altura. Ele expressou seu ceticismo com a cultura vazia dos reality shows, a perda de vigor da esfera pública e a vulgarização das relações afetivas na internet. Fez graça de um amigo que se gabava de ter feito 500 amigos em um único dia, no Facebook, dizendo que tinha dúvidas se fizera este número de amigos em seus 86 anos de vida. Percebi que havia alguma relação entre a lembrança de Janina e sua crítica dos amores efêmeros do mundo digital. Não tive coragem de lhe perguntar se não seríamos mais livres, neste mundo trivial, do que à época em que nossos avós levavam ao pé da letra o “até que a morte vos separe”. Pensei em perguntar, mas achei desnecessário.

Finalmente, dias atrás, deparei com uma entrevista de Camille Paglia. Ela cita o onipresente Damien Hirst, afirmando que as artes visuais se encontram num estado terminal. Prefere o Carnaval de Salvador. Jackson Pollok teria sido o último artista relevante. Fiz as contas: Camille nasceu em 1947, época em que Pollock pintava algumas de suas obras-primas, de modo que ela atravessou a vida sem que nada significativo tenha ocorrido no mundo da arte. Caso isto tivesse cabimento, teria de fato sido um grande azar. Ela tem pena das adolescentes condenadas a ouvir Lady Gaga. Melhor era Madonna. A Madonna original, dos anos 80 e 90, visto que a atual também não tem produzido nada que presta.

De minha parte, considero inteiramente incompreensível o desalento dos intelectuais. Não há uma só área da vida humana que não tenha melhorado substantivamente nas últimas duas ou três décadas. A começar com coisas bem menos abstratas do que a arte. A mortalidade infantil caiu pela metade nos últimos 25 anos. A pobreza extrema caiu de 43% para 16% no mundo em desenvolvimento. Seríamos hoje mais banais? Tenho lá minhas dúvidas. Quem sabe, tenhamos apenas mais gente exercendo sua banalidade. Gosto de pensar no YouTube e nas redes sociais como a realização da profecia de Andy Warhol, segundo a qual, no futuro, todos teriam seus 15 minutos de fama. Seríamos narcisistas de tamanhos diferentes. Há quem gostaria de ser a Beyoncé, há que se contente com 20 “curtidas” no Facebook. Seríamos mais felizes? Difícil acreditar. Volta e meia, escuto alguém ruminando: bom era brincar de bolinha de gude, andar de rolimã e consultar a enciclopédia Barsa. Pobre das crianças de hoje, perdidas neste mundo infernal de games, aplicativos e informação instantânea.

Alguém que viveu sua juventude nos anos 80 do século 19 poderia culpar o automóvel, o avião e a eletricidade pelo fim da incrível beleza das carroças e dos lampiões de gás. Em alguns anos, quando o Facebook for uma relíquia, como são hoje aqueles álbuns que as moças dos anos 50 cultivavam, não faltará alguém para assegurar que naquela época, sim, havia cultura, até que um dia tudo se perdeu.

Neste mês, de abril, terei a chance de acompanhar Llosa em sua visita ao Brasil. Entre um café e outro, no momento certo, prometo lhe perguntar se o seu livro não soa conservador demais para um liberal. Prometo perguntar se ele de fato acha que tudo está definhando ou, quem sabe, sejamos apenas nós que estejamos ficando para trás. Como o triste personagem Ricardo Somocurcio, que via o tempo passar enquanto sua adorada menina má rodava o mundo. Se tiver coragem, na hora, prometo perguntar.
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*Doutor em Filosofia pela UFRGS
Fonte: ZH on line, 07/04/2013
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