Roger Cohen*
Londres
Meses após o fim da guerra na Bósnia, à qual dediquei alguns anos da
minha vida, eu estava em Sarajevo e observei soldados franceses e
americanos que tiravam fotos dos edifícios destruídos no centro da
cidade -me perguntei: eles escutam o murmúrio dos fantasmas que habitam
as ruínas?
Surgiu em mim um ressentimento velado em relação a esses jovens
bem-intencionados, que chegaram tarde demais para evitar a matança de
100 mil europeus em uma "Europa unida e livre", que não tinham
testemunhado a chacina e que talvez não soubessem da indignação
provocada pelo cerco e pelo bombardeio de Sarajevo por forças
nacionalistas sérvias.
Lembrei-me dos versos da poetisa polonêsa Wislawa Szymborska
Os que sabiam
O que foi tudo aquilo
Devem dar lugar àqueles
Que pouco sabem.
Ou ainda menos.
E finalmente nada menos que nada.
Enquanto eu estava ali, em 1996, a chuva começou a cair. O cheiro de
capim e madeira se levantou das montanhas. Respirei fundo e fiquei vendo
o rio Miljacka borbulhar pelo vale. Vida! Mesmo nesse vale da morte nos
Bálcãs, a seiva era irresistível em sua vitalidade avassaladora.
Lembrei-me daquele momento em uma noite no Royal Festival Hall, em
Londres, enquanto escutava a sinfonia "Leningrado" de Shostakovich,
composta enquanto os nazistas cercavam e bombardeavam a cidade. A música
foi um tributo desafiador ao espírito humano durante um sítio de 872
dias, que matou 1,5 milhão de pessoas, a maioria de fome.
Logo depois que o cerco começou, mas antes que ele perdesse o ânimo,
Shostakovich falou à cidade pela rádio Leningrado. Sua mensagem foi de
que a vida continua, haja o que houver. Ele podia compor no intervalo
das bombas e nos abrigos antiaéreos. A população da cidade também
deveria resistir aos agressores bárbaros por meio dos atos cotidianos de
sempre.
O compositor declarou:"Uma hora atrás, terminei a partitura de dois
movimentos de uma grande composição sinfônica. Se eu conseguir
terminá-la e puder concluir o terceiro e quarto movimentos, talvez eu
possa chamá-la de minha Sétima Sinfonia. Por que estou lhes dizendo
isto? Para que os ouvintes da rádio que me escutam agora saibam que a
vida continua normalmente".
Esse foi exatamente o espírito dos moradores sitiados em Sarajevo,
capturado em uma única palavra bósnia, "inat", que significa
aproximadamente o gesto desafiador de ir para o trabalho e vestir boas
roupas. Foi o espírito de um violoncelista, Vedran Smailovic, que, em
traje de gala formal, abriu uma cadeira em uma rua de Sarajevo e tocou
"Adágio de Albinoni" em homenagem aos mortos da cidade.
Em 9 de agosto de 1942, a sinfonia de Shostakovich, cuja partitura fora
levada para além das linhas alemãs em março de 1942, foi executada pela
orquestra da rádio Leningrado. Os alto-falantes transmitiram o concerto
voltados para o inimigo no dia em que Hitler havia escolhido para
comemorar a tomada da cidade. Mas Leningrado não caiu.
Em certo nível, a sinfonia de Shostakovich é uma celebração da ousadia
humana que zomba do militarismo evocado pelo tema da "marcha" no
primeiro movimento. Mas ela não é alegre. Existe uma ambiguidade. O
stalinismo que derrotaria a invasão nazista não foi, é claro, nenhum
tributo à liberdade humana. Ele traria -e já havia trazido- grande
sofrimento.
É a dualidade da vida que é tão fascinante.
Não há como escapar dela.
Um grande mal inspira um grande heroísmo e das ruínas brotam novos inícios.
Meu ressentimento em relação àqueles soldados com suas câmeras em
Sarajevo foi uma espécie de lamento diante da passagem de um momento
heróico. No entanto, a busca dos soldados por lembranças do local era
sinal de um retorno gradativo a uma bem-vinda normalidade.
Ultimamente, tenho me lembrado dessa dualidade, primeiro em minha vida profissional e depois na pessoal.
Um homem e uma mulher são apanhados em um último abraço nos detritos de
uma fábrica de roupas em Bangladesh, cujo colapso tirou 1.127 vidas. A
imagem, elementar em seu impacto humano, também revela como pode ser
terrível a cadeia do capitalismo global. A exploração em que estão
envolvidas as corporações ocidentais é inescrupulosa.
Dos mesmos destroços, uma mulher é retirada viva depois de 17 dias. Eu
me vejo lembrando de mulheres vietnamitas em Ho Chi Minh City que tinham
vindo do delta do Mekong para trabalhar em fábricas. Elas me contaram
que o dinheiro que ganhavam representava uma oportunidade antes
inimaginável. A globalização também é isso.
Enquanto eu remoía esses pensamentos, minha filha, que é médica e mora
em Atlanta, apareceu no Skype. Ela estava especialmente bonita. Eu tinha
passado algumas semanas difíceis por vários motivos. De repente, ela
mostrou uma imagem de ultrassom. Não? Sim, ela está grávida do primeiro
filho.
A alegria cresceu no lugar da dor, tão irrefreável quanto aquele rio borbulhante em Sarajevo.
-------------------------
* The New York Times
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/newyorktimes/109711-a-derrota-cotidiana-do-tragico.shtml
Imagem da Internet
Nenhum comentário:
Postar um comentário