Esmagado pelo poder invisível do Grande Credor, o homem endividado é o novo proletário do tempo contemporâneo. Reconhecemo-lo em Giovanni Guarascio. É o pedreiro de Vittoria, na Itália,
que se pôs em chamas no dia 14 de maio, quando a sua casa foi leiloada
porque ele não era capaz de devolver 10 mil euros ao banco.
Antes dele, reconhecemos o homem endividado em muitos outros
protagonistas dos gestos desesperados dos quais os noticiários recentes
estão repletos. Mas não é suficiente. Povos inteiros, agora, incluindo
os italianos, vivem subjugadas pela dívida. Uma condição existencial que
os culpabiliza – são vocês mesmos os responsáveis pela sua desgraça! – e
os exorta a modificar os seus próprios hábitos de vida através de uma
disciplina imposta.
Antes ainda do início da indigência, é a doutrina econômica da
dívida, que se tornou senso comum, que nos adverte cotidianamente: nós
não trabalhamos o suficiente, consumimos demais, desfrutamos de todas as
proteções sociais que não deveríamos nos permitir. Mas o homem
endividado realmente deve se resignar a inclinar a cabeça e a se virar a
sós consigo mesmo?
É como se a crise de uma economia global baseada na dívida infinita,
que se reverbera como dívida soberana dos Estados, dívida privada das
empresas e dívida individual das famílias que ficaram sem poupança, nos
obrigasse a modificar o nosso olhar sobre as classes sociais. Até os
marxistas devem rever os seus esquemas: a clássica relação
capital/trabalho suplantada pela relação credor/devedor?
Se o credor, contudo, não assume as características próximas do banco ou da Equitalia,
ele incumbe como entidade supranacional que despreza as fronteiras e
nos subverte, juntamente com o fluxo dos capitais financeiros. Ilusória e
perigosamente reacionária seria a pretensão de freá-lo recorrendo a
barreiras protecionistas. Consequentemente, o homem endividado também se
transforma em figura transversal, ultrapassa as tradicionais barreiras
sociais: ele pode estar desempregado ou ser artesão, operário ou
empresário, precarizado ou funcionário público. Mas sempre um homem
endividado.
Maurizio Lazzarato, autor do livro La fabbrica dell’uomo indebitato [A
fábrica do homem endividado] (Ed. Derive/Approdi), defende que a
fábrica das dívidas, ou seja, a construção e o desenvolvimento de uma
relação de poder entre credores e devedores, é o coração estratégico das
políticas neoliberais. Em outras palavras, seria o resultado natural do
predomínio das finanças sobre os nossos sistemas econômicos. Isso
explica por que, em meio à tempestade da recessão, o resgate dos bancos
foi considerado prioritário com relação ao socorro a populações em
dificuldade: segundo esse esquema, os governos são chamados de "Credor
universal" a impor, no seu interesse, cada vez mais exceções aos
direitos sociais: os cidadãos devem se resignar à sua condição de
devedores.
Daí a sonhar com a revolta do homem endividado como próxima forma que
a luta de classes irá assumir, o passo é curto, nas intenções dos
pensadores revolucionários. Mas a realidade nunca se presta a tais
slogans. Se é verdade que a dívida incide profundamente sobre a
subjetividade daqueles que estão aflitos por causa dela, apresentando-se
como limitação insuperável e condição eterna, o efeito imediato é o
desespero social.
Depressão, vergonha, solidão, raiva. Instinto autodestrutivo – como no caso de Giovanni Guarascio
que também arrastou consigo para o fogo a sua esposa, a filha e dois
policiais – ou vontade de vingança quando entra em cena a necessidade de
identificar os artífices da sua própria desgraça: de vez em quando, os
políticos, os agentes do fisco, os banqueiros, os funcionários públicos,
os imigrantes.
O perigo, então, é que entre em ação algum empreendedor político do
desespero, hábil em jogar em cima de um inimigo interno ou externo a
responsabilidade da dívida insolúvel. Durante séculos, o antissemitismo
foi alimentado por impulsos semelhantes, mas amanhã poderia caber a
outras pessoas se tornar vítimas do ódio de outras vítimas.
O homem endividado ouve repetir dos líderes dos países mais
"virtuosos" e dos tecnocratas locais prestados à política que ele só
poderá se salvar "fazendo a lição de casa". Mas, enquanto isso, ele
perde a casa, como também demonstram os números do colapso do mercado
imobiliário. A sociedade se divide entre aqueles que ainda são capazes
de usar um cartão de crédito, permanecendo-se assim associados ao mundo
das finanças, e aqueles que perderam esse crédito nominal. Juntamente
com o desconforto social, deriva daí uma nova psicologia da dívida
privada como condenação existencial.
A filósofa Elettra Stimilli (Il debito del vivente [A
dívida do vivente], Ed. Quodlibet) identifica as raízes culturais dessa
condição na própria natureza do capitalismo. Ela cita Walter Benjamin que, no meio da crise da República de Weimar,
sacudida pelas dívidas de guerra, apontava para o capitalismo como a
mais extrema das religiões: "O capitalismo é o primeiro caso de um culto
que não redime o pecado, mas gera culpa. Uma enorme consciência da
culpa, que não sabe perdoar as próprias dívidas". É bem sabido que, em
alemão, a palavra Schuld também é utilizada para dizer "dívida" e para dizer "culpa".
Pouco importa processar de trás para frente o recurso capitalista à
economia da dívida ao longo da sua história. O fato é que, hoje em dia, o
homem endividado é uma figura social tão generalizada a ponto de nos
fazer duvidar que ele aceita se sentir culpado por um longo tempo ainda.
Enquanto isso, a dívida pública italiana atingiu em março o número recorde de 2,034725 trilhões de euros.
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A reportagem é de Gad Lerner, publicada no jornal La Repubblica, 15-05-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: IHU on line, 17/05/2013
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