sexta-feira, 17 de maio de 2013

Trabalho ou lazer?

 Getty Images
 Bridget Conor alerta para as armadilhas do trabalho da classe criativa: "A produção artística sempre esteve ligada a prazer, 
a algo que você não precisaria ser pago para fazer"

Em 2002, Richard Florida, professor das Universidades de Nova York e Toronto, cunhou a expressão "classe criativa". No livro "A Ascensão da Classe Criativa", que logo se tornou um best-seller, o urbanista americano defende a ideia de que, no século XXI, o mundo do trabalho será dominado por quem atua em setores como games, software, audiovisual, design, moda, editoração e mídia. Diferentemente da classe operária, a nova classe teria o privilégio de trabalhar com o que gosta, num ambiente mais livre e menos hierárquico. Uma década depois, enquanto Florida segue fazendo palestras, muitos criativos, no mundo real, lidam com relações informais de trabalho, instabilidade financeira, autogestão e com a ansiedade de alimentar, incessantemente, a rede de contatos, considerada um bem valioso na "economia da reputação".

Passada a euforia em torno da "creative class", Inglaterra e Estados Unidos enfrentam, neste momento, outra questão: a dos trabalhadores criativos. A pergunta que está sendo feita é: o que o "hype" virou na prática? Trata-se de uma discussão que, muito provavelmente, também o Brasil enfrentará dentro de alguns anos. Para falar sobre o assunto, o Valor entrevistou a pesquisadora Bridget Conor, professora do departamento de mídia e indústrias culturais e criativas do King's College, de Londres, que prepara livro sobre o ofício dos roteiristas de cinema e TV.

Valor: No Brasil, é incomum ouvir o termo trabalhadores criativos com tanta frequência como se ouve nos Estados Unidos e no Reino Unido. É possível que estejamos atrasados ou a expressão e a discussão são novas mesmo?
Bridget Conor: Esse é um termo relativamente novo e bastante controverso. Surgiu como parte das políticas culturais que, influenciadas pelo discurso das indústrias criativas, passaram a se preocupar em treinar uma nova geração para desenvolver o setor. Antes, se falava em artistas ou trabalhadores do setor cultural. Apesar de saber que o termo "trabalhador criativo" é complicado, até por ser abrangente demais, acredito que ele pode nos ajudar a entender essas novas práticas de trabalho e suas particularidades em relação à manufatura ou ao setor de serviços, por exemplo. Ao mesmo tempo, quando as palavras criatividade e trabalho são entrelaçadas, há uma tendência a pensar em algo novo, positivo, excitante, como se o trabalho fora dessa indústria fosse menos estimulante. Apesar de uma visão mais crítica ter começado a surgir, ainda há uma valorização excessiva em torno da expressão.

Valor: O Brasil, recentemente, aderiu ao discurso em torno da economia criativa. Será que, em alguns anos, estaremos discutindo a situação dos trabalhadores criativos?
Bridget: Eu me arriscaria a dizer que vai se falar, primeiro, da formação de profissionais, das possibilidades de emprego e, então, do significado do trabalho criativo. Depois dessas etapas, quem sabe se discutam as condições de trabalho, ou seja, os trabalhadores em si.

Valor: Quais são as condições de trabalho no Reino Unido, considerado o berço da ideia de indústrias criativas?
Bridget: Há muita precariedade e desigualdade de oportunidades. Basicamente, as relações de trabalho são flexíveis, as pessoas podem trabalhar de casa, tendem a ser mais autônomas e a tocar vários projetos simultaneamente. Nesse sentido, é curioso que o Yahoo! tenha, recentemente, chamado os funcionários de volta ao escritório, pondo fim ao "home office". Claro que há problemas ligados à companhia, que tem perdido mercado, mas o caso também parece mostrar os limites da ideia de que, nas companhias "high tech", você pode trabalhar de pijama, que todo mundo é "cool", jovem e o ambiente é divertido. Há muito de "hype" nisso. Mas, nas indústrias criativas, ninguém quer falar sobre condições precárias de trabalho ou sobre quanto flexibilidade não significa necessariamente liberdade ou vantagem. Essa não é uma conversa bem-vinda.

Valor: Os jovens que querem entrar nessa área também parecem não estar preocupados com isso. No Reino Unido, a quantidade de pessoas de 25, 26 anos que fazem estágios não remunerados, durante até dois anos, em organizações culturais, é espantosa.
Bridget: Esse é um setor muito sedutor. E a indústria alimenta a imagem de ser feita para pessoas jovens, cheias de energia, smartphone a postos noite e dia. Em Londres, neste momento, muitas companhias contam com a mão de obra de estagiários que, na maioria das vezes, não serão contratados. Isso, para mim, é trabalho não remunerado, simples assim. Esses jovens pagam para estar no ambiente criativo, gastando com transporte e alimentação. É preocupante que o trabalho não remunerado tenha se tornado parte da estrutura da indústria cultural. Uma das consequências é que, se não tiver recursos para se manter, você não passa nem pela porta das empresas. Isso vai contra a imagem dessa indústria - a de ser mais livre e capaz de desenvolver a nova economia.

Valor: Isso tem ligação com o fato de, nesse setor, a fronteira entre trabalho e prazer tende a ser menos clara?
Bridget: Essa é uma das armadilhas para a análise do trabalho criativo. Filosoficamente, criatividade e produção artística sempre estiveram ligadas a prazer, a algo que você não precisaria ser pago para fazer. É assim que, muitas vezes, a exploração ocorre. O que é lazer e o que é trabalho? No cinema, roteiristas ou produtores trabalham o tempo todo. Se não estão fazendo um roteiro, estão indo a reuniões ou a bares para encontrar pessoas. De alguma maneira, estão sempre cavando novos trabalhos.

Valor: Os profissionais se dão conta disso?
Bridget: Penso que a maioria é muito consciente, mas o que os impele a continuar é o fato de adorar o que fazem. O amor pelo que se faz é muito forte nesse setor.

Valor: No Brasil, por causa de uma nova lei que exige certa quantidade de conteúdo nacional na TV paga, temos uma grande demanda por roteiristas. Na sua pesquisa, a senhora fala muito dos cursos de roteiro, algo que tem explodido no Brasil. É assim em todo lugar?
Bridget: Sim, há um interesse geral. Há, além de cursos, manuais que ensinam a ser roteirista em dois meses, duas semanas, dois dias, e centenas de sites com dicas e ensinamentos. São tantos os cursos e livros para dizer às pessoas como virar roteirista que fica parecendo que é fácil escrever para cinema ou televisão. Mas a verdade é que praticamente ninguém consegue viver disso.

Valor: Mesmo no Reino Unido?
Bridget: Com certeza. Há muito fetiche ao redor desse ofício. Isso resultou em algo que é uma indústria em si, a indústria de "como ser um roteirista". Profissionais que não conseguem viver só de roteiros ganham um dinheiro extra ensinando, escrevendo manuais e dando workshops. Como em quase todos os trabalhos criativos, a mensagem geral é que todo mundo pode virar roteirista. Nas indústrias culturais, um dos motores do trabalho é a ilusão.
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Por Ana Paula Sousa | Para o Valor, de Londres

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