Bridget Conor alerta para as armadilhas do trabalho da classe criativa:
"A produção artística sempre esteve ligada a prazer,
a algo que você não
precisaria ser pago para fazer"
Em 2002, Richard Florida, professor das Universidades de Nova York e
Toronto, cunhou a expressão "classe criativa". No livro "A Ascensão da
Classe Criativa", que logo se tornou um best-seller, o urbanista
americano defende a ideia de que, no século XXI, o mundo do trabalho
será dominado por quem atua em setores como games, software,
audiovisual, design, moda, editoração e mídia. Diferentemente da classe
operária, a nova classe teria o privilégio de trabalhar com o que gosta,
num ambiente mais livre e menos hierárquico. Uma década depois,
enquanto Florida segue fazendo palestras, muitos criativos, no mundo
real, lidam com relações informais de trabalho, instabilidade
financeira, autogestão e com a ansiedade de alimentar, incessantemente, a
rede de contatos, considerada um bem valioso na "economia da
reputação".
Passada a euforia em torno da "creative class", Inglaterra e Estados
Unidos enfrentam, neste momento, outra questão: a dos trabalhadores
criativos. A pergunta que está sendo feita é: o que o "hype" virou na
prática? Trata-se de uma discussão que, muito provavelmente, também o
Brasil enfrentará dentro de alguns anos. Para falar sobre o assunto, o Valor
entrevistou a pesquisadora Bridget Conor, professora do departamento de
mídia e indústrias culturais e criativas do King's College, de Londres,
que prepara livro sobre o ofício dos roteiristas de cinema e TV.
Valor: No Brasil, é incomum ouvir o termo
trabalhadores criativos com tanta frequência como se ouve nos Estados
Unidos e no Reino Unido. É possível que estejamos atrasados ou a
expressão e a discussão são novas mesmo?
Bridget Conor: Esse é um termo relativamente novo e
bastante controverso. Surgiu como parte das políticas culturais que,
influenciadas pelo discurso das indústrias criativas, passaram a se
preocupar em treinar uma nova geração para desenvolver o setor. Antes,
se falava em artistas ou trabalhadores do setor cultural. Apesar de
saber que o termo "trabalhador criativo" é complicado, até por ser
abrangente demais, acredito que ele pode nos ajudar a entender essas
novas práticas de trabalho e suas particularidades em relação à
manufatura ou ao setor de serviços, por exemplo. Ao mesmo tempo, quando
as palavras criatividade e trabalho são entrelaçadas, há uma tendência a
pensar em algo novo, positivo, excitante, como se o trabalho fora dessa
indústria fosse menos estimulante. Apesar de uma visão mais crítica ter
começado a surgir, ainda há uma valorização excessiva em torno da
expressão.
Valor: O Brasil, recentemente, aderiu ao
discurso em torno da economia criativa. Será que, em alguns anos,
estaremos discutindo a situação dos trabalhadores criativos?
Bridget: Eu me arriscaria a dizer que vai se falar,
primeiro, da formação de profissionais, das possibilidades de emprego e,
então, do significado do trabalho criativo. Depois dessas etapas, quem
sabe se discutam as condições de trabalho, ou seja, os trabalhadores em
si.
Valor: Quais são as condições de trabalho no Reino Unido, considerado o berço da ideia de indústrias criativas?
Bridget: Há muita precariedade e desigualdade de
oportunidades. Basicamente, as relações de trabalho são flexíveis, as
pessoas podem trabalhar de casa, tendem a ser mais autônomas e a tocar
vários projetos simultaneamente. Nesse sentido, é curioso que o Yahoo!
tenha, recentemente, chamado os funcionários de volta ao escritório,
pondo fim ao "home office". Claro que há problemas ligados à companhia,
que tem perdido mercado, mas o caso também parece mostrar os limites da
ideia de que, nas companhias "high tech", você pode trabalhar de pijama,
que todo mundo é "cool", jovem e o ambiente é divertido. Há muito de
"hype" nisso. Mas, nas indústrias criativas, ninguém quer falar sobre
condições precárias de trabalho ou sobre quanto flexibilidade não
significa necessariamente liberdade ou vantagem. Essa não é uma conversa
bem-vinda.
Valor: Os jovens que querem entrar nessa área
também parecem não estar preocupados com isso. No Reino Unido, a
quantidade de pessoas de 25, 26 anos que fazem estágios não remunerados,
durante até dois anos, em organizações culturais, é espantosa.
Bridget: Esse é um setor muito sedutor. E a
indústria alimenta a imagem de ser feita para pessoas jovens, cheias de
energia, smartphone a postos noite e dia. Em Londres, neste momento,
muitas companhias contam com a mão de obra de estagiários que, na
maioria das vezes, não serão contratados. Isso, para mim, é trabalho não
remunerado, simples assim. Esses jovens pagam para estar no ambiente
criativo, gastando com transporte e alimentação. É preocupante que o
trabalho não remunerado tenha se tornado parte da estrutura da indústria
cultural. Uma das consequências é que, se não tiver recursos para se
manter, você não passa nem pela porta das empresas. Isso vai contra a
imagem dessa indústria - a de ser mais livre e capaz de desenvolver a
nova economia.
Valor: Isso tem ligação com o fato de, nesse setor, a fronteira entre trabalho e prazer tende a ser menos clara?
Bridget: Essa é uma das armadilhas para a análise do
trabalho criativo. Filosoficamente, criatividade e produção artística
sempre estiveram ligadas a prazer, a algo que você não precisaria ser
pago para fazer. É assim que, muitas vezes, a exploração ocorre. O que é
lazer e o que é trabalho? No cinema, roteiristas ou produtores
trabalham o tempo todo. Se não estão fazendo um roteiro, estão indo a
reuniões ou a bares para encontrar pessoas. De alguma maneira, estão
sempre cavando novos trabalhos.
Valor: Os profissionais se dão conta disso?
Bridget: Penso que a maioria é muito consciente, mas
o que os impele a continuar é o fato de adorar o que fazem. O amor pelo
que se faz é muito forte nesse setor.
Valor: No Brasil, por causa de uma nova lei que
exige certa quantidade de conteúdo nacional na TV paga, temos uma grande
demanda por roteiristas. Na sua pesquisa, a senhora fala muito dos
cursos de roteiro, algo que tem explodido no Brasil. É assim em todo
lugar?
Bridget: Sim, há um interesse geral. Há, além de
cursos, manuais que ensinam a ser roteirista em dois meses, duas
semanas, dois dias, e centenas de sites com dicas e ensinamentos. São
tantos os cursos e livros para dizer às pessoas como virar roteirista
que fica parecendo que é fácil escrever para cinema ou televisão. Mas a
verdade é que praticamente ninguém consegue viver disso.
Valor: Mesmo no Reino Unido?
Bridget: Com certeza. Há muito fetiche ao redor
desse ofício. Isso resultou em algo que é uma indústria em si, a
indústria de "como ser um roteirista". Profissionais que não conseguem
viver só de roteiros ganham um dinheiro extra ensinando, escrevendo
manuais e dando workshops. Como em quase todos os trabalhos criativos, a
mensagem geral é que todo mundo pode virar roteirista. Nas indústrias
culturais, um dos motores do trabalho é a ilusão.
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