Paulo Ghiraldelli Jr.*
Há dois elementos iconográficos muito populares entre filósofos: o quadro de Rafael, “A escola de Atenas”, especialmente o seu centro que mostra Platão e Aristóteles andando e conversando, e a estátua “O pensador”,
criada por Rodin. Já faz algum tempo que essas figuras aparecem aqui e
ali quando se trata de ilustrar o nome “filosofia”. Com a internet isso
se ampliou mais ainda. É difícil um departamento de filosofia, seja lá
em qual universidade, que não se apresente ao público virtualmente
acompanhado de uma dessas duas figuras. Isso se tornou tão banal que
raramente notamos o quanto essas figuras diferem entre si, ainda que
estejam sendo colocadas para representar ou ilustrar algo que seria uma
mesma coisa, a filosofia.
Para Rafael, talvez não houvesse como
distinguir Platão e Aristóteles senão como dois passeadores. A própria
escola de Aristóteles se chamou “peripatética”. Os filósofos filosofavam
no peripatos. Andando pelos jardins do Liceu eles conversavam e nesse
afã, filosofavam. Filosofar era andar e conversar, de preferência tudo
junto. Existia o livro, mas não a imprensa. A cultura oral, então
dominante, favorecia a filosofia como prática conversacional. Essa
conversação se dava, não raro, no passeio, no andar juntos, no caminhar e
falar. Os filósofos antigos experimentaram uma cinestesia particular,
que talvez tenha muito a ver com o conteúdo mesmo de sua filosofia. Eles
andavam e falavam. Pensavam a partir da linguagem, do falar, e falavam
andando. O pensar antigo se fez puxado por dois elementos dinâmicos,
característicos de fluxos e não estancamentos: o falar e o caminhar. O
pensar antigo se fez como alguma coisa fluida, direcional, que deveria
ir de um lugar a outro segundo os trajetos urbanos ou rurais calmos.
Diferentemente de Rafael, Rodin não fez
“O pensador” para que ele representasse a atividade do filósofo, mas do
poeta. A estátua tinha inicialmente o nome de “O poeta”. Passou depois a
ser “O poeta pensador”. Ninguém mais sabe isso, porque ela se encaixou
bem como sendo representativa da atividade do pensador, do filósofo, e
assim ganhou popularidade. Isso ocorreu porque a própria figura do
filósofo forjou-se segundo um novo imaginário. O filósofo deixou de ser o
homem do passeio para ser o homem do livro e do escritório. A
cinestesia do pensar, falar e andar foi trocada pela cinestesia do
sentar. A expressão “parar para pensar”, desconhecida dos antigos,
ganhou status na modernidade e se tornou sinônima de reflexão. Para
pensar bem, para refletir, para “tomar consciência”, o homem passou a
ter de “parar”. Aliás, pensar ganhou esse status particular de “tomar
consciência”, alguma coisa antes subjetiva, voltada para si mesmo, que
voltada para o mundo.
Não se anda após as refeições, portanto,
pensar sempre havia sido, para os antigos, algo distante da atividade
de comer, e a alma intelectual de Platão era o oposto da alma apetitiva.
Na modernidade, nasceu a ideia de metáforas biológicas novas para o
conhecer: a “assimilação” . Metáforas digestivas, de quem tem de ficar
parado e inerte, vieram a se fazer presentes no mundo do pensamento e do
conhecimento. Assim, em uma época em que tudo ficou veloz, os filósofos
ficaram lentos. Eles se transformaram em assimiladores, digestores,
homens dedicados ao “parar para pensar”. Viraram homens afeitos ao
agarrar, separar o que é bom e assimilar, transformando em dejeto o que
não é bom. Transformaram-se em analíticos, não mais conversadores.
Rafael e Rodin deram-nos dois elementos
iconográficos da filosofia que, embora utilizados juntos, estão
separados por concepções do que é a filosofia. A ideia de Rafael captou a
filosofia como o que ela sempre foi no mundo antigo: uma participante
da vida do modo que o caminhar é algo inerente à vida. Há vida no que se
movimenta. A ideia de Rodin captou a filosofia como o que ela se tornou
na modernidade, principalmente se lembrarmos aí de Husserl e sua
suspensão do juízo, com a epoché: a retirada da vida, a não
tomada de decisão, a atividade de quem agarra as coisas e as segura para
si, assimilando-as para retirar delas o que é essencial, puro, para
jogar fora o impuro. A filosofia como herança do ascetismo, como notou
Nietzsche.
A filosofia antiga está para a
cinestesia do andar, do suar, do envolvimento do corpo, assim como a
filosofia moderna está para a cinestesia do parar, do digerir, do
envolvimento de órgãos internos do corpo. A filosofia antiga está para a
cinestesia do fluxo assim como a filosofia moderna está para a
cinestesia do estancamento. Sócrates foi um homem do diálogo. E se no
diálogo não chegava a um ponto feliz, ao menos se chegava a uma aporia.
Husserl foi um homem de pouco diálogo e sua filosofia tinha como
objetivo ser exata, certa, e não uma aporia – suspender o juízo nunca
foi outra coisa senão o modo mais fácil de não entrar em aporia alguma.
Levando a sério a ideia de Peter Sloterdijk
(1), de que podemos entender a filosofia (tanto quanto outras
atividades que fazem o homem ser homem) como uma prática que visa uma
performance, sendo que seu objetivo é levar o filósofo (ou o homem) a
uma nova e melhor performance, então não podemos desprezar o que nos
mostra Rafael e Rodin.
Para Sloterdijk o homem não se explica
psicologicamente pelo trabalho (Marx) ou pela comunicação (Habermas) ou
pela interação (Dewey), mas pela prática, pelo exercício, pelo caráter
de performance segundo repetição, o que é, enfim, aquilo que é próprio
do exercício. A filosofia nada é que mais uma dessas práticas – como
exercício – do homem que faz o homem ser homem. Ora, se consideramos tal
hipótese, não há como não se perguntar sobre as relações entre
cinestesias como a do andar antigo em relação à filosofia antiga e
cinestesias como a do sentar e digerir modernos em relação à filosofia
moderna. Elas devem nos dizer mais do até então pudemos notar nelas.
O homem antigo não conhece para pegar.
Ele anda, passeia e quem passeia observa – contempla. O homem moderno,
Heidegger e outros notaram bem, conhece para pegar, ou melhor, conhece
pegando. Dominar e assimilar são metáforas para o conhecimento na
modernidade. Contemplar é metáfora para o conhecimento na antiguidade ou
relativa aos antigos. Os antigos não falaram em sujeito e objeto, mas
em práxis. Os modernos falaram em sujeito e objeto, em alguma coisa que
tem mãos de um lado e que deixa algo a ser agarrado e consumido do
outro. A modernidade é a época da “metafísica da subjetividade” e do
humanismo, disse Heidegger, para então, em seguida, dizer também que
essa metafísica tinha a ver com dominação, com o esquema próprio da
relação sujeito-objeto. Dominar é, em grande medida, pegar e comer.
Rafael não desenhou Platão e Aristóteles comendo. Rodin não fez seu
pensador comendo, mas, de certo modo, é difícil não vê-lo digerindo (as
caricaturas jocosas de “O Pensador” vão além disso!).
Digerir implica em aguardar e sentir
todo o sangue se dirigir para o centro do corpo. Andar implica em
sentido não o sangue, mas o vento no rosto. A filosofia do vento no
rosto pediu que os filósofos vivessem a filosofia. A filosofia do sangue
no centro do corpo pediu que os filósofos fizessem uso visceral da
filosofia, mas não necessariamente o tempo todo.
(1) [2010] Sloterdijk, P. The art of Philosophy. New York: Columbia University Press, 2012. [2019] Sloterdijk, P. You must change your life. Malden: Polity, 2013.
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* 2013 Paulo Ghiraldelli, filósofo, escritor, cartunista e professor da UFRRJ.
Fonte: http://ghiraldelli.pro.br/a-filosofia-como-passeio-e-como-digestao/23/05/2013
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